quarta-feira, novembro 24, 2004

 

Todas iguais


Foi desta. Foi desta que me mandaram para outro lugar que não esse fim de mundo ou
esse paraíso que é Portugal. Tudo em classe de negociante, que o destino fica do outro lado do Atlântico. Uma guloseima com que nos fazem esquecer as mais de dezasseis horas totais da viagem. Ou para isso, ou para nos crermos importantes, mesmo que não passemos de soldados rasos entrincheirados. Um cálice antes do fuzilamento.

Para fuzilamentos, sejam eles em que classe for, toda a pressa é muita. Qual bom português, deixei escorrer os minutos à volta dum cafezito a meio da tarde, e lá tive de fazer a minha corrida vespertina para apanhar o comboio. A primeira classe pode ter um serviço mais requintado, mas a história só dá honras de revolucionária à classe mais baixa. Não é por isso de esperar no futuro próximo essa que seria a verdadeira revolução na filosofia ferroviária, isto é, a inversão do conceito de "apanhanço" do comboio: este é que passaria a apanhar-nos. Seria o fim de tão desagradáveis correrias. Mas sendo nós nessa corrente filosófica apanhados, será de prever a saída à rua de jacobinos de todas as nações marchando pela defesa da liberdade individual que o perseguidor, e por isso tirano, comboio ameaçaria. Seriam organizados constantes cortes de linha, os comboios nunca consegueriam apanhar ninguém, e acabariamos por ter de correr à mesma, desta feita todo o caminho até ao nosso destino final, o que seria muito pior. Depois deste pensamento profundo, e só depois dele, fiz-me então à corrida para o comboio, que não apanhei, visto está! Nem mesmo tendo um bilhete de primeira classe.

Entrei na carruagem, encostei a mala enorme que carregava mais coisas dos outros que minhas (isto de ser simpático e levar coisas para a filha do chefe que está do outro lado do Atlântico tem os seus custos) e olhei a sala em busca dum lugar no meio da multidão que enchia aquela primeira classe. Primeira classe num país como a Suíça torna-se inútil não só por estar quase tão apinhada como a segunda, mas principalmente pelo facto da maioria da população a ela ter acesso, tornando-a banal. Duas vantagens fora do baralho, fui em busca do que pudesse justificar a quase duplicação do preço. Quando estava quase a perder a esperança da descobrir, vi um carrinho de bebidas a vir na minha direcção: aí estava por fim. E em troca da espera, abuso no consumo: café, digestivo, amendoim e chocolate. Inocência a minha, era tudo bebível contra-pagamento e lá tive de esvaziar a carteira. Vim eu a descobrir uns minutos mais tarde que muito pior que isso era o facto de afinal o carrinho também percorrer as demais classes.

Embora não tivesse apanhado o primeiro comboio, a corrida não foi de todo inútil. Gerou uma outra corrida, desta vez atrás do avião, corrida muito mais dificil como qualquer um poderá compreender: o avião anda mais depressa. Se dificuldade motiva, mais motiva a necessidade. Tanto assim foi que, despachadas as malas, o teimoso relógio ainda nos dava meia-hora disponível antes do embarque. Esperar sim, mas não no meio dessa ralé que enche os aeroportos. De elevador panorâmico, subimos directamente até à sala onde só entram manadas com o carimbo "business". Entrei e procurei coisa que justificasse o preço deste novo bilhete de categoria. Procurei à direita, investiguei à esquerda, fui ao fundo da sala e até vasculhei na casa-de-banho. Vantagem só a encontrei mesmo no frigorífico, mas a cerveja era de segunda numa classe que se queria de primeira! Ainda assim, foi com ela que amacei o corpo antes de entrar no avião, para garantir melhor sono durante a dezena de horas de viagem. Só mesmo para isso, nunca por ser cerveja ou pelo facto de ser à borla!

Avião adentro, concederam-me um lugar mais espaçoso que o dos comuns mortais lá para trás arrumados. Já mais satisfeito por começar a compreender a vantagem da tarifa mais dispendiosa, experimentei escolher um filme dos propostos no pequeno ecrã individual que habitava do braço do meu assento. Folhei a programação, li as descrições de cada filme, voltei a ler, fiquei indeciso, voltei a ler, voltei a ficar indeciso, esqueci-me do que estava escrito sobre alguns dos filmes, voltei a ler, e supreendentemente ao fim duma boa meia-hora consegui determinar o filme a ver. Radiante pelo meu feito, tentei ligar o ecrã. Experimentei todos os botões e até combinações deles, mas o dito negava-se sempre. Três pancadinhas estratégicas, e a coisa lá entendeu trabalhar, mas quedou-se muda e o filme já tinha começado há muito, inviabilizando toda a utilizade do serviço.

Hora do repasto e até o estômago esperava ser agora o tratamento de rei, mas de nouvelle cuisine só o aspecto: o sabor continuava horrível tal qual o de classe mais em conta. Diferença só mesmo na quantidade: nesta classe há que aturar mais daquilo!


Tirando a espaço para duas pernas e a cerveja de segunda, as classes são como as mulheres: todas iguais, só que algumas ficam mais caras!

Comments:
...efectivamente, Zé, todas las mujeres somos iguales, pero habemos unas mas iguales que otras....

atentamente,

una fan de Luis Miguel
 
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