sábado, janeiro 29, 2005

 

Feira sem vaidade


A Suíça é um país rico. É um país de milionários, mas também um país duma classe média abastada e numerosa. Haverá por certo quem se faça de excelente gestor para superar as necessidades básicas, mas esses são uma pequena parte da populaça. O suíço que faz o grosso das estatísticas tem um carro sofisticado, não olha ao preço da gasolina e não se importa de pagar o lugar de estacionamento. O inverno daqui traz a temperatura bem abaixo do patamar nulo, e as ruas são um deserto paradisíaco para quem não gosta de trânsito compacto. As condições são as ideais para que se encham os centros comerciais climatizados dos extremos da cidade e para que se deixe ao frio lacinante o comércio local do centro.

A realidade apresenta forte concorrência às lojas das ruas pedrestes da zona antiga, mas ela não vem de grandes suprefícies descaracterizadas e descaracterizantes. A afronta vem de feirantes que se espalham encosta a baixo, cobrindo os paralelos das ruas proibidas a automóveis. São bancadas rústicas apoiadas em paus toscos e metais enferrujados. Abrigam-se debaixo de toldos coçados, que de protegerem o vendedor, pouco lhes resta para acolher o cliente. O seu estilo não é assinado nem se lhe reconhece em nenhuma orientação estética, revivalista ou futurista. O som ambiente é o dos passos na calçada, da neve a desprender-se dos telhados, do sino da catedral, das conversas misturadas, dos ferrolhos das portas. O aroma é o do queijo, da fruta, das alfaces, do pão, das castanhas ao lume.

Logo desde o amanhecer gelado os suíços saiem de casa a pé para marcharem encosta abaixo e monte acima, entregando-se ao prazer de fazer compras na rua, gerando uma cidade viva e onde se quer viver. Onde o carro não é rei, onde o centro comercial não é alameda de passeio, escaparate duma falsa cultura. Embora abastados, os suíços não descançam no prazer fácil do transporte próprio, da vida pronta a consumir, do tudo em um. Parecem ultrapassar o véu cegante que essa facilidade nos coloca pela frente, e são recompensados com um viver mais intenso e gratificante.

São frequentes as críticas a este povo pela sua frieza e pelo facto de serem pouco abertos. Reparemos que deixam o conforto pelo prazer de interagirem uns com os outros na rua energética e vibrante, enquanto que os portugueses mesmo com um clima deslumbrante, se resguardam no seu veículo por entre as multidões impessoais das filas de trânsito, se escondem em centros comerciais onde "está tudo à mão", mas onde não há nada para viver, onde não há onde comunicar para fora de nós próprios e do nosso mundo mais próximo. Reparamos então que arriscam muito mais na extroversão do que nós. E que são recompensados, posso eu afirmar por observação própria!


domingo, janeiro 23, 2005

 

Ópera no gelo


Os cachecóis enchiam as ruas de Genebra em noite de derby nacional contra os inimigos de Lausanne. Casa cheia para testemunhar a disputa da liderança do campeonato, inúmeros batalhões de barris de cerveja que antes perder do que passar sede; camiões vários de polícias para juntar o azul às cores vermelha e branca da festa.

A equipa visitante entra em campo ao habitual som desmoralizador de assobios e palavras menos amistosas, os visitados são ovacionados, e a equipa de abitragem é recebida por um silêncio respeitoso.

Jogava-se forte, jogava-se duro, tão duro que pouco tempo depois do apito inicial já alguns jogadores se escondiam por detrás duma nuvém de punhos violentos. Nada que o respeito pelo juíz em campo não acalmasse, e lá voltaram os bravos à conquista do golo. Reacção da multidão? Assobiaram a escaramuça e bateram palmas ao regresso à lei do jogo.

O golo veio como em qualquer jogo que se quer bom. Depois vieram mais dois, um para cada lado, numero igual de jogadores que descançaram antes do tempo à conta duma boa porção de sangue que caíu no solo. Reacção da populaça? Saltaram de alegria com os golos, pois claro. Quanto a vestigios de violência nem o melhor dos arqueólogos os descobriria, tão sabe esta gente o quão o desporto é espectáculo e o espectáculo é prazer alegre.

Lausanne perdia, mas sabia a sua claque que é exactamente nestes momentos que o tambor incitador à resistência mais se deve sentir, que as vozes motivantes à galvanização se devem ouvir. Terá sido por o saberem que quanto mais perdiam mais incitavam os seus bravos à reviravolta, tal como eles nunca dispostos a terminar com o esforço antes do fim da esperança.

Nem mesmo quando o áribtro anulou erradamente um golo as coisas aqueceram do lado das bancadas. Afinal nada melhor do que tomar partido das tecnologias já velhas para através da repetição corrigir o erro em tempo certo, validar o tento e continuar com a partida. O hóquei no gelo não faz rodar milhões, mas os milhares que por ele passam parecem ser mais bem utilizados na manutenção da credibilidade da pessoa do juíz do que num futebol que ameaça contaminar o resto da sociedade com desrespeito pelo intérprete da lei, populismo e política de tasca.

O final foi acompanhado de palmas para a equipa vencedora que agradeceu com vénias e três reentradas em campo. Para poder ser o final duma ópera só faltou o clássico bravo, que mesmo em Lisboa os portugueses insistem em pronunciar em jeitos parisienses.


terça-feira, janeiro 11, 2005

 

Guerra sem estúdio


Fugi pois dos montes alpinos no primeiro avião disponível, que diz o povo que em tempos de guerra não há quem limpe armas. Acho muito mal, sobretudo naquelas guerras que duram muitos anos. Imaginem lá o estado das armas que os pobres soldados têm de carregar! O que eles necessitam lá nas trincheiras é duma mulher a dias, qual guerreira do pó de espanador em riste. Mas dessas lavras militares outros fazem livros e grossos volumes. Eu limitei-me a apanhar o primeiro avião disponível. Para batalhas já me bastam as do dia-a-dia.

Não pensem porém que batalhas que se travam todos os dias são menos aguerridas do que as militares. Que o digam os elementos do batalhão infantil "Bebés da Iberia" que faziam ecoar no ar seco do avião gritos que se diriam do mais agonizante sofrimento. Um à minha frente, dois a meu lado e três atrás, deixavam-me isolado dum sono a que eu me queria juntar durante aquela hora e meia de vôo entre Genebra e Madrid. Com toda a certeza pertenciam à banda do seu exército, tal era a sincronia perfeita com que nos presenteavam: grandes tenores em solo ou coralistas exímios quer a duas, três ou quatro vozes. Nem nos cânons apresentavam dificuldades, desde os mais simples aos mais complexos. Figuras de silêncio não contavam nas suas pautas, que quando um verdadeiro guerreiro ataca, fá-lo sem misericórdia.

Invadido na minha audição, logo desde a primeira investida hasteei o lenço branco, mas as hospedeiras não me quizeram sarar as feridas com tampões para os ouvidos ou transferindo-me para uma trincheira mais pacífica. Sem possibilidades de defesa contra o invasor cruel, tive de permití-lo nos meus domínios auditivos. Agora que tento por fim descansar, várias horas depois da invasão, parecem relutantes em desocupar os meus territórios e os seus cantos terríveis ecoam ainda nos meus ouvidos.


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