quarta-feira, maio 18, 2005

 

Dias difíceis


Mal saímos da manga de acesso ao avião, demos de cara com o homem a quem a empresa tinha incumbido de nos ir recolher ao aeroporto. Se foi a empresa que o incumbiu de um serviço mais alargado ou se foi ele próprio que decidiu fazer algo mais por nós, é coisa que nunca cheguei a descobrir. Pediu-nos os passaportes e passou connosco à margem de toda a fila interminável que aguardava em frente aos balcões de controlo. Entregou os passaportes a dois polícias e conduziu-nos directamente aos tapetes rolantes para que recolhessemos as bagagens. Passado cinco minutos, apareceu de novo com os passaportes, estes já carimbados por oficiais que nunca nos tinham posto a vista em cima.

Pela porta baça que nos separava do átrio do aeroporto parecia verem-se centenas de cabeças que perfaziam uma multidão. Mas achei que deveria ser apenas uma ilusão óptica. Quando saímos, a multidão era mesmo verdadeira e tapava o acesso ao parque de estacionamento. Eram centenas de homens, todos vestidos com túnicas em tons de branco e beje, de faces escuras e com um ar sujo. O bafo quente que nos atingiu quando ultrapassámos a porta provocou-me tonturas. A luz imensa que invadia o espaço por debaixo do avançado que nos cobria fazia-me olhar aquela multidão em contra-luz, o que tornava os homens ainda mais escuros e sujos. Os olhares nas suas caras eram de estranheza pelo nosso aspecto, mas também de algum respeito a custo de medo do castigo por maltratar um ocidental. Talvez por isso tenham de imediato aberto um corredor para que pudéssemos passar.

No caminho para o hotel o motorista disse que o tempo estava ameno, porque tinha chovido no dia anterior. Tendo ainda dificuldades em respirar naquele ar quente e seco, antevi cinquenta dias difíceis no Paquistão.

segunda-feira, maio 16, 2005

 

Sábado em Buenos Aires


Eram onze da noite e estava no hotel. O dia era de Sábado, mas tinha-o passado a trabalhar e estava agora cansado. Os meus colegas tinham-me convidado a sair, mas recusei a oferta, tão farto estava da sua presença. Não que tenha algo contra a companhia deles, mas depois duma semana a fio juntos, necessitava de ver outra gente ou, ainda não tinha decidido, estar sozinho.

A início pensei que um livro me poria pronto a adormecer, mas cedo concluí que antes de adormecer ficaria várias horas a culpabilizar-me por não aproveitar a minha última hipótese de sair a um Sábado à noite em Buenos Aires. Agravado este sentimento pelo facto de não ter ainda sentido um dos mais agitados bairros na noite portenha.

Quis então decidir-me a saír, mas o facto de estar sozinho inibia-me. Que faria quando chegasse a um bar? Sentar-me-ia numa mesa a desviar o olhar consecutivamente entre o copo e as paredes? Ficaria a olhar para as pessoas? E como reagiria quando elas me devolvessem o olhar? Depois de várias voltas pensativas ao quarto, conlcuí que isso era um mero pormenor comparado com a frustração que sentiria no dia seguinte se não saísse. Alguma coisa me haveria de ocorrer quando chegasse ao bar.

O bairro ficava do outro lado da cidade, e tive de apanhar um taxi. O motorista largou-me na praça principal do bairro, que albergava os bares mais animados daquela zona. Dei a volta à praça e espreitei cada um dos sítios. Um deles e parecia um café matutino, àquela hora transformado em local de conversas nocturnas: tinha mesas de madeira, quase todas elas cheias, e música a meio volume. Tinha algumas mesas de plástico na rua, e foi numa delas que vi uma rapariga sentada sozinha. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi o de ter ali um parceiro nesta condição de boémio solitário. Mas depois afastei a ideia, até porque ela era bonita e seguramente estaria com o namorado que tinha ido apenas à casa de banho ou pedir algo ao balcão. Quem sabe alternativamente com algum amigo que a estivesse a tentar seduzir ou pura e simplesmente teria combinado encontro com gente que estaria por aí a rebentar. Além disso, tinha fisionomia latina e parecia local, o que logo reduzia drasticamente a probabilidade de estar sozinha.

Continuei à volta da praça até que me vim encontrar no ponto de partida. Todos os outros bares pareciam-me demasiado confusos, e decidi tentar o das mesas de madeira. Tenho que confessar que me moveu também um resto de esperança de encontrar a rapariga ainda sozinha e de que esta não estivesse mesmo à espera de ninguém.

Quando cheguei ao bar, ela ocupava ainda a mesma mesa na rua e continuava sozinha. Nesse momento, a mesa ao seu lado ficou vaga e aproveitei de imediato para me sentar. As empregadas que lá dentro se esforçavam por atender a todos os pedidos pareciam não me terem visto, e passado um bom par de minutos ainda nenhuma me tinha interpelado.

Entretanto, no passeio em frente ao bar, um grupo mascarado fazia uma algazarra estridente. O grupo movia-se em volta de uma líder, que parecia ter sido escolhida para chefe por ter a mais assanhada voz entre todos. Apregoava em alta voz a quem passava a sua festa de anos, que se iria desenrolar daí a instantes no segundo piso do bar. Pareceu-me que a maioria das pessoas que passava apenas os cria loucos e nunca se apercebeu que estavam a anúnciar uma peça de teatro dum grupo amador. A peça começaria daí a minutos, e achei que seria um excelente passa-tempo para quem anda sozinho pelas ruas de Buenos Aires a um Sábado à noite. Quando me levantei, reparei que a mesa ao lado estava agora vazia, e dei por certo que alguém teria vindo buscar a rapariga.

Subi então ao primeiro andar para assistir à peça, e coloquei-me no último lugar da fila que esperava para entrar na sala. Passados alguns minutos, senti que o lugar na fila atrás de mim fora preenchido. Vasculhei no fundo sombrio da minha casa de ferramentas para encontrar a minha descrição que julgava desaparecida. Limpei-lhe o pó, disfarcei-lhe a ferrugem, e foi com o seu uso total que me virei discretamente para ver quem estava por detrás de mim. Era, como não poderia deixar de ser para o bem desta narrativa, a rapariga solitária. Parecia mesmo que tinha saído sozinha, uma vez que continuava sem companhia.

Voltei à casa das ferramentas, mas frazes interessantes era coisa que não havia. Ainda procurei na secção dos utensílios para quebrar o gelo, mas a única coisa que encontrei foi um antigo picador de gelo, ainda com marcas de sangue da última vez que o utilizei para meter conversa com alguém: fui eu quem saíu ferido. Sem nada cá dentro, virei-me para fora e olhei à minha volta, mas não vi nada que pudesse ser utilizado. Pensei então que um teatro não tinha muito que se pudesse utilizar. Depois ocorreu-me que aquele não era um teatro normal, e pús-me a analisar as diferenças. Foi então que reparei na falta das habituais bilheteiras, e apercebi-me de que não sabia como nem quanto pagar pela entrada. E quem poderia saber? A rapariga solitária, a tal que parecia local e que poderia ser uma potencial companhia para uma conversa sobre o país depois da peça.

Questão feita, e a conversa veio por si. Natália, chamava-se. Expliquei-lhe o que andava a fazer por aquele canto do mundo, e ela atirou-me à cara a pergunta se eu reduzia custo nas fábricas "fazendo as pessoas trabalharem mais". Expliquei-lhe que não, que a maioria das soluções vinha de outras áreas, mas ela repetiu a pergunta várias vezes, até ao ponto de eu não saber se não me estava a explicar bem em espanhol, se ela me queria massacrar com moralidade ou se pura e simplemente Natália não estava a entender algo que era simples. Foi confuso que tomei o lugar ao lado dela para assistir à peça.

Era um trabalho amador, e cedo compreendi que a pouca qualidade de representação da líder de voz estridente chegava para que a sua liderança se baseasse não apenas na voz, mas também na capacidade teatral. E com isto fica a peça mais que apresentada. Mais que apresentada para mim, mas não para a Natália, que a certa altura começou a discutir com uma das actrizes. Tinham pedido ao público que votasse de braço no ar no suspeito que teria cometido o crime. Mas a Natália achou que esbracejar não bastava, e acendeu uma discussão dizendo que a estória estava mal contada. Nesta altura compreendi que aquilo só podia estar tudo combinado, que ela deveria ser uma actriz também e que a conversa antes de começar a peça não fora para mais do que gozar comigo e deixar-me um peso na consciência.

Acabada a peça, esperava vê-la desaparecer por entre os camarins improvisados, para se reunir aos colegas. Mas não: ela desceu as escadas e já estava na rua preparada para rumar a outro canto, quando lhe propus dois dedos de conversa e uma cerveja de confraternização. Ela aceitou os dedos, mas desculpou-se com o mal que o álcool lhe fazia e recusou a bebida. Não insisti neste último ponto, pois mesmo sem cerveja ela disparatava em todas as direcções, falando pelos cotovelos e quase arremessando os punhos: havia muito racismo na Argentina, mas não sabia dizer contra quem; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; havia imensa corrupção no país, mas não sabia dizer onde; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; os políticos eram todos medíocres, mas não sabia dizer porquê; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; as coisas tinham de mudar na Argentina, mas não sabia dizer o quê; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; algo teria de ser mudado no país, mas era impossível mudar as coisas; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; não se cuidava do meio ambiente, mas não sabia que tipo de atrocidades eram cometidas; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; nos Estados Unidos é que era, mas eram eles os culpados pela situação na Argentina. Pensei em perguntar-lhe porque é que tinha voltado, mas achei demasiado ofensivo e, baralhado como estava, não suportaria uma discussão irónica. O barulho no bar tinha-se tornado excessivo, e propus que saíssemos dali.

Ao chegar à rua, Natália foi atingida por um súbito desejo de jogar bilhar. Porque não? E fomos em busca de um bar com uma mesa para o efeito. Depois de um quarto de hora de fracasso, o desejo metamorfoseou-se, tomando agora a forma duma pista de dança. Confessou-me só ter dinheiro à conta para a entrada, mas que não fosse por isso, sempre se poderia arranjar um trago à minha conta, é para isso que servem os perfeitos desconhecidos. Ela era dos arredores, mas assegurava não conhecer a cidade depois de ter "vivido vários anos nos Estados Unidos", e por ali não sabia de nada.

Apanhámos então um taxi, e ela deixou a escolha do destino nas mãos do taxista. Ora o senhor condutor tinha as mãos ocupadas no volante, e apenas pode sair-se um com tal de "Roxy". A Natália jurou que se lembrava de ter ido áquele sítio, e que, sim senhor, era muito bom. Falava novamente pelos cotovelos a fora com o taxista, e descobriu que eram do mesmo bairro: quase abraçou o velho! Vizinho da Natália ou apenas velho, o taxista deixou-nos à porta dum bar dançante onde nos pediam uma fortuna para entrar e onde sexagenários dançavam modas do tempo deles. "Mas então não tinhas cá vindo, ó Natália?": ela embaraçou-se com a pergunta e safou-se com um "vamos apanhar um outro taxi que nos leve ao Roxy".

O segundo taxista sabia do que dirigia e levou-nos ao sítio certo. Desde a entrada até ao balcão do bar, Natália conseguiu meter conversa com umas cinco pessoas diferentes, a uma velocidade impressionante. Arranjadas as bebidas, seguimos para a pista de rock, onde entre Doors e Clash colocavam Britney Spears.

No barulho das luzes, revi os acontecimentos da noite e conluí quão louca e limitada Natália era, mas que era também uma companhia energética e imensamente engraçada. Eu tinha tido sorte ao encontrá-la e tinha passado uma noite bastante melhor do que aquilo que tinha previsto. Nesse momento, Natália disse-me que ia à casa de banho e pediu-me que não saísse dali. Nunca mais a vi.

sexta-feira, maio 06, 2005

 

A quimera de Buenos Aires


O fim-de-semana tinha acabado de me despertar ainda era manhã. Foi pelas onze e meia que me pediu que o aproveitasse. Não implorou como quem busca caridade, mas fê-lo com um argumento de peso: se as longas horas de trabalho durante a semana me roubavam toda e qualquer hipótese de descobir a Buenos Aires em que me encontrava, havia que aproveitar o fim-de-semana por inteiro.

Quando saí do hotel, tinha como plano passear-me por uma das avenidas mais importantes do burgo, a bisbilhotar cidade. Mas como isso é coisa que não se faz de barriga vazia, deliciei-me com um enorme bife argentino no primeiro tasco que me surgiu ao caminho. Desculpem-me os puros do regime vegetariano, mas todas as saladas que provei naquele país eram insípidas, já para não dizer que o bife é o orgulho gastronómico nacional. O orgulho terá o seu peso, que o diga o estômago que de tão cheio, me dificultava o andar quando de novo me fiz ao passeio.

Voltada a esquina que dava acesso à avenida prometida, e quase devolvia o bife ao património nacional quando à minha frente pularam dois indivíduos irrequietamente mascarados. Por detrás deles, vários outros semelhantes perturbavam o normal passar de quantos passeavam. Metiam-se com crianças e velhos, faziam macacadas e recitavam linhas que se diriam de peças teatrais. "Algum grupo de teatro de rua a fazer-se à esmola", confessaram-me os meus botões. Só quando me estenderam um panfleto de bom papel e de refinado desenho percebi que de rua pouco tinham, e que estes indivíduos não eram nada mais nada menos do que os actores de um grande teatro mesmo ali em frente. Vinham para a rua entreter a tarde de compras da gente cumum em busca de espectadores para a noite. Achei a ideia fantástica, tê-la-ia achado mesmo única, não fosse o facto de ao longo da avenida ter encontrado diversos outros grupos de outros teatros a fazerem exactamente o mesmo, com diferenças no estilo, como aliás se pretende. As pessoas sorriam e aceitavam os panfletos educadamente, mas será que viriam mesmo ao teatro? Questionei-me se a táctica seria eficaz, e prometi a mim mesmo voltar mais tarde para investigar.

Ao continuar avenida em frente, que para a frente têm as avenidas argentinas muito, tão compridas que são, decidi espreitar o programa dum cinema despretensioso encolhido entre maltratados edifícios da Belle Époque. Foi nessa vitrine que pela primeira vez descobri o Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires. Recolhi das bilheteiras uma grelha, e apercebi-me da minha ignorância gigante quando practicamente não consegui identificar nenhum dos realizadores ou filmes por entre as centenas em cartaz. Nada que a senhora por detrás do balcão não pudesse resolver vendendo-me um programa detalhado de tamanho bíblico. Li as descrições dos filmes desse dia, fiz as contas às distâncias, e achei que ainda ía a tempo de chegar a outro cinema onde daí a meia hora iria começar um filme que parecia valer mais que o bilhete de metro para lá chegar.

À saída do metro apercebi-me que o cinema ficava num centro comercial, o que me fez temer o pior, sendo eu tão adverso de salas com pipoca e refrigerante. Voltei a olhar o programa e a designação "Cinema Independente" deu-me a coragem mínima para prosseguir. Olhando para o placar electrónico e as publicidades por cima das bilheteiras tudo diria que se trataria duma normal tarde de Sábado num qualquer grande centro comercial moderno, mas bastava desviar o olhar para o solo para desconfiar das intermináveis filas cheias de gentes de todos os tipos: estavam lá os intlectuais aficionados de tudo o que é "independente", os irreverentes que querem "mudar o mundo", os alternativos, mas também os habituais do cinema para passar a tarde, as idosas do chá das cinco, os adolescentes da moda, os reformados das cartas de jogar e os ditos normais ou demasido cinzentos para serem apelidados de seja o que for. Em suma, estava por lá o povo todo, o que me surpreendeu imenso, habituado eu que estava às salas semi-vazias do 222. Parecia que a cidade tinha decido vir ali em peso, o que me fez lembrar do teatro, pobre coitado, mais uma vez deixado de lado pela competição do cinema.

A primeira reação à multidão ali presente revestiu-se de alegria, mas a que se lhe seguiu teve o carimbo da desolação, sobretudo depois de ver afixado o sinal "agotado" em todos os filmes que me tinham suscitado interesse. Lembrei-me então de ir ver se seria mesmo verdade que os esforços dos actores trazidos à rua eram inglórios.

Voltei para o bairro dos teatros e deixei-me ficar por uma esplanada fronteira em observação quase científica. Jantei por ali mesmo, e o estômago ameaçou fazer das suas de novo quando vi famílias inteiras, daquelas de se passear por aqui pela tarde, a entrar teatros adentro para ver as últimas estreias. Poderia ser a multidão do cinema que tinha entretanto mudado de poiso, descontente com as promessas por cumprir da sétima arte? Impossível, os bilhetes para o cinema estavam esgotados noite dentro, e não me parece que quem os havia comprado se tivesse esquecido de ir assistir à sessão. Estava então a resultar a estratégia de rua, que para além de trazer gente à beira do palco, dava um encanto único áquela artéria de Buenos Aires.

Imaginei então o centro lisboeta, com as portadas dos seus teatros desertos e os seus promotores de cinema alternativo, pobres solitários incompreendidos à beira da bancarrota. Poderia uma alegria de actores feita atingir o interesse distraído dos lisboetas no Rossio ou no Chiado ou em qualquer outro ponto do país, recheando as salas e reforçando-se uma cultura de teatro? Poder-se-ia fomentar com isso uma maior cultura de rua e de vivência comunitária em Portugal? Podería o desafio de um festival aproximar a massa consumista portuguesa dum cinema mais enriquecedor?

Em Buenos Aires, capital dum país subdesenvolvido, isto está a acontecer. Será para Portugal uma quimera?

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