sexta-feira, maio 06, 2005

 

A quimera de Buenos Aires


O fim-de-semana tinha acabado de me despertar ainda era manhã. Foi pelas onze e meia que me pediu que o aproveitasse. Não implorou como quem busca caridade, mas fê-lo com um argumento de peso: se as longas horas de trabalho durante a semana me roubavam toda e qualquer hipótese de descobir a Buenos Aires em que me encontrava, havia que aproveitar o fim-de-semana por inteiro.

Quando saí do hotel, tinha como plano passear-me por uma das avenidas mais importantes do burgo, a bisbilhotar cidade. Mas como isso é coisa que não se faz de barriga vazia, deliciei-me com um enorme bife argentino no primeiro tasco que me surgiu ao caminho. Desculpem-me os puros do regime vegetariano, mas todas as saladas que provei naquele país eram insípidas, já para não dizer que o bife é o orgulho gastronómico nacional. O orgulho terá o seu peso, que o diga o estômago que de tão cheio, me dificultava o andar quando de novo me fiz ao passeio.

Voltada a esquina que dava acesso à avenida prometida, e quase devolvia o bife ao património nacional quando à minha frente pularam dois indivíduos irrequietamente mascarados. Por detrás deles, vários outros semelhantes perturbavam o normal passar de quantos passeavam. Metiam-se com crianças e velhos, faziam macacadas e recitavam linhas que se diriam de peças teatrais. "Algum grupo de teatro de rua a fazer-se à esmola", confessaram-me os meus botões. Só quando me estenderam um panfleto de bom papel e de refinado desenho percebi que de rua pouco tinham, e que estes indivíduos não eram nada mais nada menos do que os actores de um grande teatro mesmo ali em frente. Vinham para a rua entreter a tarde de compras da gente cumum em busca de espectadores para a noite. Achei a ideia fantástica, tê-la-ia achado mesmo única, não fosse o facto de ao longo da avenida ter encontrado diversos outros grupos de outros teatros a fazerem exactamente o mesmo, com diferenças no estilo, como aliás se pretende. As pessoas sorriam e aceitavam os panfletos educadamente, mas será que viriam mesmo ao teatro? Questionei-me se a táctica seria eficaz, e prometi a mim mesmo voltar mais tarde para investigar.

Ao continuar avenida em frente, que para a frente têm as avenidas argentinas muito, tão compridas que são, decidi espreitar o programa dum cinema despretensioso encolhido entre maltratados edifícios da Belle Époque. Foi nessa vitrine que pela primeira vez descobri o Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires. Recolhi das bilheteiras uma grelha, e apercebi-me da minha ignorância gigante quando practicamente não consegui identificar nenhum dos realizadores ou filmes por entre as centenas em cartaz. Nada que a senhora por detrás do balcão não pudesse resolver vendendo-me um programa detalhado de tamanho bíblico. Li as descrições dos filmes desse dia, fiz as contas às distâncias, e achei que ainda ía a tempo de chegar a outro cinema onde daí a meia hora iria começar um filme que parecia valer mais que o bilhete de metro para lá chegar.

À saída do metro apercebi-me que o cinema ficava num centro comercial, o que me fez temer o pior, sendo eu tão adverso de salas com pipoca e refrigerante. Voltei a olhar o programa e a designação "Cinema Independente" deu-me a coragem mínima para prosseguir. Olhando para o placar electrónico e as publicidades por cima das bilheteiras tudo diria que se trataria duma normal tarde de Sábado num qualquer grande centro comercial moderno, mas bastava desviar o olhar para o solo para desconfiar das intermináveis filas cheias de gentes de todos os tipos: estavam lá os intlectuais aficionados de tudo o que é "independente", os irreverentes que querem "mudar o mundo", os alternativos, mas também os habituais do cinema para passar a tarde, as idosas do chá das cinco, os adolescentes da moda, os reformados das cartas de jogar e os ditos normais ou demasido cinzentos para serem apelidados de seja o que for. Em suma, estava por lá o povo todo, o que me surpreendeu imenso, habituado eu que estava às salas semi-vazias do 222. Parecia que a cidade tinha decido vir ali em peso, o que me fez lembrar do teatro, pobre coitado, mais uma vez deixado de lado pela competição do cinema.

A primeira reação à multidão ali presente revestiu-se de alegria, mas a que se lhe seguiu teve o carimbo da desolação, sobretudo depois de ver afixado o sinal "agotado" em todos os filmes que me tinham suscitado interesse. Lembrei-me então de ir ver se seria mesmo verdade que os esforços dos actores trazidos à rua eram inglórios.

Voltei para o bairro dos teatros e deixei-me ficar por uma esplanada fronteira em observação quase científica. Jantei por ali mesmo, e o estômago ameaçou fazer das suas de novo quando vi famílias inteiras, daquelas de se passear por aqui pela tarde, a entrar teatros adentro para ver as últimas estreias. Poderia ser a multidão do cinema que tinha entretanto mudado de poiso, descontente com as promessas por cumprir da sétima arte? Impossível, os bilhetes para o cinema estavam esgotados noite dentro, e não me parece que quem os havia comprado se tivesse esquecido de ir assistir à sessão. Estava então a resultar a estratégia de rua, que para além de trazer gente à beira do palco, dava um encanto único áquela artéria de Buenos Aires.

Imaginei então o centro lisboeta, com as portadas dos seus teatros desertos e os seus promotores de cinema alternativo, pobres solitários incompreendidos à beira da bancarrota. Poderia uma alegria de actores feita atingir o interesse distraído dos lisboetas no Rossio ou no Chiado ou em qualquer outro ponto do país, recheando as salas e reforçando-se uma cultura de teatro? Poder-se-ia fomentar com isso uma maior cultura de rua e de vivência comunitária em Portugal? Podería o desafio de um festival aproximar a massa consumista portuguesa dum cinema mais enriquecedor?

Em Buenos Aires, capital dum país subdesenvolvido, isto está a acontecer. Será para Portugal uma quimera?

Comments:
AH! Aqui também acontece o mesmo! À porta do teatro de alvalade, do cinema da Luz. Isso mesmo, famílias inteiras!
E vi eu um concerto de música antiga no castelo de leiria no sabado a noite, à bórliú, de sala quase vazia, qd todas as pessoas que eu tinha convidado preferiram lambuzar-se de farturas-penim na feira de maio, e dar estalos aos putos qd eles fazem fitas p andar nos carros de choque.
O mais curioso é que podiam ter feito tudo isso após assistirem ao concerto (como os que assitiram efectivamente, diga-se a verdade...).
Mas não!
Deve ser da altura, para ir ao castelo sobem-se muitos degraus, e rampas...
 
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