segunda-feira, maio 16, 2005

 

Sábado em Buenos Aires


Eram onze da noite e estava no hotel. O dia era de Sábado, mas tinha-o passado a trabalhar e estava agora cansado. Os meus colegas tinham-me convidado a sair, mas recusei a oferta, tão farto estava da sua presença. Não que tenha algo contra a companhia deles, mas depois duma semana a fio juntos, necessitava de ver outra gente ou, ainda não tinha decidido, estar sozinho.

A início pensei que um livro me poria pronto a adormecer, mas cedo concluí que antes de adormecer ficaria várias horas a culpabilizar-me por não aproveitar a minha última hipótese de sair a um Sábado à noite em Buenos Aires. Agravado este sentimento pelo facto de não ter ainda sentido um dos mais agitados bairros na noite portenha.

Quis então decidir-me a saír, mas o facto de estar sozinho inibia-me. Que faria quando chegasse a um bar? Sentar-me-ia numa mesa a desviar o olhar consecutivamente entre o copo e as paredes? Ficaria a olhar para as pessoas? E como reagiria quando elas me devolvessem o olhar? Depois de várias voltas pensativas ao quarto, conlcuí que isso era um mero pormenor comparado com a frustração que sentiria no dia seguinte se não saísse. Alguma coisa me haveria de ocorrer quando chegasse ao bar.

O bairro ficava do outro lado da cidade, e tive de apanhar um taxi. O motorista largou-me na praça principal do bairro, que albergava os bares mais animados daquela zona. Dei a volta à praça e espreitei cada um dos sítios. Um deles e parecia um café matutino, àquela hora transformado em local de conversas nocturnas: tinha mesas de madeira, quase todas elas cheias, e música a meio volume. Tinha algumas mesas de plástico na rua, e foi numa delas que vi uma rapariga sentada sozinha. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi o de ter ali um parceiro nesta condição de boémio solitário. Mas depois afastei a ideia, até porque ela era bonita e seguramente estaria com o namorado que tinha ido apenas à casa de banho ou pedir algo ao balcão. Quem sabe alternativamente com algum amigo que a estivesse a tentar seduzir ou pura e simplesmente teria combinado encontro com gente que estaria por aí a rebentar. Além disso, tinha fisionomia latina e parecia local, o que logo reduzia drasticamente a probabilidade de estar sozinha.

Continuei à volta da praça até que me vim encontrar no ponto de partida. Todos os outros bares pareciam-me demasiado confusos, e decidi tentar o das mesas de madeira. Tenho que confessar que me moveu também um resto de esperança de encontrar a rapariga ainda sozinha e de que esta não estivesse mesmo à espera de ninguém.

Quando cheguei ao bar, ela ocupava ainda a mesma mesa na rua e continuava sozinha. Nesse momento, a mesa ao seu lado ficou vaga e aproveitei de imediato para me sentar. As empregadas que lá dentro se esforçavam por atender a todos os pedidos pareciam não me terem visto, e passado um bom par de minutos ainda nenhuma me tinha interpelado.

Entretanto, no passeio em frente ao bar, um grupo mascarado fazia uma algazarra estridente. O grupo movia-se em volta de uma líder, que parecia ter sido escolhida para chefe por ter a mais assanhada voz entre todos. Apregoava em alta voz a quem passava a sua festa de anos, que se iria desenrolar daí a instantes no segundo piso do bar. Pareceu-me que a maioria das pessoas que passava apenas os cria loucos e nunca se apercebeu que estavam a anúnciar uma peça de teatro dum grupo amador. A peça começaria daí a minutos, e achei que seria um excelente passa-tempo para quem anda sozinho pelas ruas de Buenos Aires a um Sábado à noite. Quando me levantei, reparei que a mesa ao lado estava agora vazia, e dei por certo que alguém teria vindo buscar a rapariga.

Subi então ao primeiro andar para assistir à peça, e coloquei-me no último lugar da fila que esperava para entrar na sala. Passados alguns minutos, senti que o lugar na fila atrás de mim fora preenchido. Vasculhei no fundo sombrio da minha casa de ferramentas para encontrar a minha descrição que julgava desaparecida. Limpei-lhe o pó, disfarcei-lhe a ferrugem, e foi com o seu uso total que me virei discretamente para ver quem estava por detrás de mim. Era, como não poderia deixar de ser para o bem desta narrativa, a rapariga solitária. Parecia mesmo que tinha saído sozinha, uma vez que continuava sem companhia.

Voltei à casa das ferramentas, mas frazes interessantes era coisa que não havia. Ainda procurei na secção dos utensílios para quebrar o gelo, mas a única coisa que encontrei foi um antigo picador de gelo, ainda com marcas de sangue da última vez que o utilizei para meter conversa com alguém: fui eu quem saíu ferido. Sem nada cá dentro, virei-me para fora e olhei à minha volta, mas não vi nada que pudesse ser utilizado. Pensei então que um teatro não tinha muito que se pudesse utilizar. Depois ocorreu-me que aquele não era um teatro normal, e pús-me a analisar as diferenças. Foi então que reparei na falta das habituais bilheteiras, e apercebi-me de que não sabia como nem quanto pagar pela entrada. E quem poderia saber? A rapariga solitária, a tal que parecia local e que poderia ser uma potencial companhia para uma conversa sobre o país depois da peça.

Questão feita, e a conversa veio por si. Natália, chamava-se. Expliquei-lhe o que andava a fazer por aquele canto do mundo, e ela atirou-me à cara a pergunta se eu reduzia custo nas fábricas "fazendo as pessoas trabalharem mais". Expliquei-lhe que não, que a maioria das soluções vinha de outras áreas, mas ela repetiu a pergunta várias vezes, até ao ponto de eu não saber se não me estava a explicar bem em espanhol, se ela me queria massacrar com moralidade ou se pura e simplemente Natália não estava a entender algo que era simples. Foi confuso que tomei o lugar ao lado dela para assistir à peça.

Era um trabalho amador, e cedo compreendi que a pouca qualidade de representação da líder de voz estridente chegava para que a sua liderança se baseasse não apenas na voz, mas também na capacidade teatral. E com isto fica a peça mais que apresentada. Mais que apresentada para mim, mas não para a Natália, que a certa altura começou a discutir com uma das actrizes. Tinham pedido ao público que votasse de braço no ar no suspeito que teria cometido o crime. Mas a Natália achou que esbracejar não bastava, e acendeu uma discussão dizendo que a estória estava mal contada. Nesta altura compreendi que aquilo só podia estar tudo combinado, que ela deveria ser uma actriz também e que a conversa antes de começar a peça não fora para mais do que gozar comigo e deixar-me um peso na consciência.

Acabada a peça, esperava vê-la desaparecer por entre os camarins improvisados, para se reunir aos colegas. Mas não: ela desceu as escadas e já estava na rua preparada para rumar a outro canto, quando lhe propus dois dedos de conversa e uma cerveja de confraternização. Ela aceitou os dedos, mas desculpou-se com o mal que o álcool lhe fazia e recusou a bebida. Não insisti neste último ponto, pois mesmo sem cerveja ela disparatava em todas as direcções, falando pelos cotovelos e quase arremessando os punhos: havia muito racismo na Argentina, mas não sabia dizer contra quem; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; havia imensa corrupção no país, mas não sabia dizer onde; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; os políticos eram todos medíocres, mas não sabia dizer porquê; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; as coisas tinham de mudar na Argentina, mas não sabia dizer o quê; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; algo teria de ser mudado no país, mas era impossível mudar as coisas; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; não se cuidava do meio ambiente, mas não sabia que tipo de atrocidades eram cometidas; tinha vivido vários anos nos Estados Unidos; nos Estados Unidos é que era, mas eram eles os culpados pela situação na Argentina. Pensei em perguntar-lhe porque é que tinha voltado, mas achei demasiado ofensivo e, baralhado como estava, não suportaria uma discussão irónica. O barulho no bar tinha-se tornado excessivo, e propus que saíssemos dali.

Ao chegar à rua, Natália foi atingida por um súbito desejo de jogar bilhar. Porque não? E fomos em busca de um bar com uma mesa para o efeito. Depois de um quarto de hora de fracasso, o desejo metamorfoseou-se, tomando agora a forma duma pista de dança. Confessou-me só ter dinheiro à conta para a entrada, mas que não fosse por isso, sempre se poderia arranjar um trago à minha conta, é para isso que servem os perfeitos desconhecidos. Ela era dos arredores, mas assegurava não conhecer a cidade depois de ter "vivido vários anos nos Estados Unidos", e por ali não sabia de nada.

Apanhámos então um taxi, e ela deixou a escolha do destino nas mãos do taxista. Ora o senhor condutor tinha as mãos ocupadas no volante, e apenas pode sair-se um com tal de "Roxy". A Natália jurou que se lembrava de ter ido áquele sítio, e que, sim senhor, era muito bom. Falava novamente pelos cotovelos a fora com o taxista, e descobriu que eram do mesmo bairro: quase abraçou o velho! Vizinho da Natália ou apenas velho, o taxista deixou-nos à porta dum bar dançante onde nos pediam uma fortuna para entrar e onde sexagenários dançavam modas do tempo deles. "Mas então não tinhas cá vindo, ó Natália?": ela embaraçou-se com a pergunta e safou-se com um "vamos apanhar um outro taxi que nos leve ao Roxy".

O segundo taxista sabia do que dirigia e levou-nos ao sítio certo. Desde a entrada até ao balcão do bar, Natália conseguiu meter conversa com umas cinco pessoas diferentes, a uma velocidade impressionante. Arranjadas as bebidas, seguimos para a pista de rock, onde entre Doors e Clash colocavam Britney Spears.

No barulho das luzes, revi os acontecimentos da noite e conluí quão louca e limitada Natália era, mas que era também uma companhia energética e imensamente engraçada. Eu tinha tido sorte ao encontrá-la e tinha passado uma noite bastante melhor do que aquilo que tinha previsto. Nesse momento, Natália disse-me que ia à casa de banho e pediu-me que não saísse dali. Nunca mais a vi.

Comments:
das duas uma:

- ou ela ao dizer "não saias daqui" pretendia que corresses atrás dela para dentro da casa de banho, para... mmm... confraternizarem... mmm.... num saudável intercâmbio cultural de expressão latina...
ou
- Natália era o seu nome artistico, e tendo em conta a atenciosa companhia que havias sido naquela noite, sumiu-se assim mesmo, poupando-te o embaraço de descobrires que afinal, na intimidade, Natália era mesmo era um Roberto...

em Buenos Aires, nunca se sabe...
 
Pois, tal não me tinha ainda ocorrido... Como se costuma dizer,"à noite (e principalmente em Buenos Aires) todas as gatas são pardas". Ou então, muito simplesmente, a sina do marinheiro é ir deixando um amor em cada porto, ao sabor das marés e da escalas.
 
O meu nome é Zé.
Não sou o Chico Marinheiro, esse tal que

"[...] c'a memória
de ter amor de mulher
vez à vez, em cada porto
não cuidou de amar a Glória
foi-se à fruta no pomar
deixou a planta no horto [...]"*

Com fruta não me meto eu, que tem bicho escondido debaixo de casca reluzente. Muito mais terei a dar à planta: o lagarto que tiver sempre está bem à vista.
Mas esta história não tem pomar para poder ter fruta. Limita-se a ser amostra de gente argentina.

*Ségio Godinho, Fado Gago
 
Até agora o melhor post sem dúvida...

Para minha curiosidade na Argentina apenas conheceste essa "limitada" Natália?

Porque o tempo para travar conhecimentos é limitado? Porque as colegas de trabalho não deixam?
 
Ele há coisas não se dizem a estranhos. Muitas mais há que não se partilham com quem faz de "anonymous" assinatura.
Mas prometo responder à pergunta se escolheres para ti um nome constante, e se explicares porque foi esta a tua entrada favorita.
 
querido zé,
una vez más compruebo que tienes "jale" con las latinas. ¿acaso también dejaste rastros en tu pasada por puebla? ¿existe ahí alguien que todavía suspire por aquel extranjero que se fue? porque yo conozco una sirena que no quiere seguir suspirando sumergida en la espera de ese marinero que no vendrá.
y ahora que estás en otros mares dime: ¿cómo se siente navegar por las áridas dunas?
 
Enviar um comentário

<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?