segunda-feira, dezembro 13, 2004

 

Há mar e mar


Desta vez não fui eu. Não, nada disso, já me bastam as várias séries de doze notas com que tive de contribuir para a saúde fiscal dos transportes públicos suíços. Mais uma e voltaria à lusa terra, nem mala de cartão carregando, que até essa teria de vender depois de tão onerosas aventuras no autocarro.

Não era o meu chefe, mas poderá vir a ser, e quem poder vir a ser, bom tratamento deve de nós terá de receber, dizem as regras da boa escalada rumo ao cume do sucesso. Mas se dum chefe se trata, um dos que já muitos degraus dessa escada calcorreou, desculpas nenhumas se adimitem para explicar a entrada num autocarro sem as preciosas peças metálicas que dão direito ao papelinho que faz as delicias do senhor revisor. E pois não é, que mesmo sem desculpa alguma, o senhor meu possível futuro chefe sentou-se ao meu lado sem moedas ou bilhete? E eu é que tinha de fornecer solução? Quem vai para o mar avia-se em terra, e aquilo com que eu me tinha aviado jazia já no bucho da máquina. Sem passados marinheiros, o homem tinha descuidado a preparação do apetrecho, e era agora náufrago em busca de salvação, nem mesmo eu lhe podendo valer.

Se o deserto é deserto, mais deserto é o mar. Mesmo sendo deserto, o deserto apresenta cor de areia e cor de céu, não como o maroto horizonte marinho, que insiste em fazer confudir água e céu, desertificando ainda mais o mar e tornando mais fortes as miragens. Tão forte era esta, que realidade se tornou, e a sereia que ao pobre náufrago apareceu, atirou-lhe uma bóia, daquelas que também as máquinas de bilhetes gostam.

O náufrago em terra firme deixava de ser náufrago, voltando a ser chefe de outros que não eu, meu possivel chefe num futuro que não longínquo. A uma sereia destas oferecer-se-ía a vida, não fosse a vida deste estar já num patamar elevado da escada, uma altura a que ninguém se dá ao trabalho de subir para a cobrar. Com muitos agradecimentos se pagou então a sereia, jurando que mais não queria.


Não queria mais, mas mais teve de receber. Não do náufrago, que esse como ficou esclarecido já voltou a ser chefe. Recebeu do tenebroso mostrengo que fragilisou o navio em que seguíamos. "Sereia ao mar", gritámos ambos, mas era já tarde de mais: o autocarro seguia a sua linha deixando-a para trás, indefesa nas garras de tão cruel criatura, não possuindo sequer um passe social para se defender. Esse tinha ficado esquecido nos seus aposentos, e qual dentada letal, a sereia recebia agora uma requisição para pagar uma dura multa de doze.

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