domingo, fevereiro 06, 2005

 

Aviso à Navegação


O café é também bar e restaurante. A música é escolhida a dedo e é projectada no ambiente sem impossibilitar conversas que não sejam aos berros. A ergonomia do mobiliário é a ideal: não faltam as fortes mesas de madeira sobre as quais defender de punho as mais profundas convicções ou um balcão onde partilhar a solidão com o empregado anfirião. O menu é toda uma interminável pasta de argolas, em que apenas uma meia página contém de comer. O resto são réplicas imaginadas de discos de 45 rotações por minuto de outras épocas: um aperitivo visual para quem não aproveita a espera pela comida para mostrar riqueza com bebidas de três contos de réis. A meia página comestível faz-se de saladas compostas, pratos suculentos e tintos bastante bem bebíveis.

Mais do que café, bar e restaurante, é meu poiso habitual neste terra onde só mesmo o nada acontece. De porto tão habitual que é, já lhe conheço de ginjeira todos os malandros. E um lugar assim não se quer perder. Tão pouco se quererá deixar mal malandros, que do mal sabem eles muito mais do que nós.

Perguntem a qualquer marinheiro e a resposta será invariável: descobrir o Brasil não foi coisa fácil, assim como o não é descobrir qualquer maravilha que seja: portos de perdição gostosa não o são todos. Aquele de que esta entrada reza não o foi também: muito deambulei eu por antros aprumados, portos muito bem sinalizados mas à barra dos quais somos atirados contra as rochas. Mais que deambular, fui arrastado numa vaga de piratas do capital que não concebem o esforço mental que não tenha cifrão ou promoção por objectivo. Tal como na evagelização dos infiéis, há que crer também na evolução mental da pirataria. Depois de os ver embater nas rochas tantas vezes, tentei mostrar-lhes que há portos outros (porto outro, no caso desta terra onde, como já tive ocasião de indicar, só mesmo o nada se passa) onde as rochas são mais fofinhas.

Marinheiro que se preze não publicita os cantos aconchegantes que encontra, não vão eles encher-se de escorbuto, malária, paludismo e pestes que tal. Muito pior será se nos levarem o ouro ou a cana de açucar! Embora navegue há já algum tempo, caí no erro de conduzir potenciais contaminados ao café bar restaurante da minha eleição. O resultado está como a terra, bem à vista: os malandros, os tais que sabem mais do mal do que nós, não gostaram da afronta, especialmente quando o grupo gringo-mexicano de nariz mais empinado que uma proa se abancou a tomar uma bebida numa mesa designada a servir jantares.

A mesa de madeira é para testar a resistência do punho na defesa da ideia, mas regar a discussão sem provar o pitéu do chefe é uma afronta do tamanho dum mastro em qualquer porto suíço*. Nomeadamente quando as mesas designadas à bebida se encontravam vazias e havia toda uma tripulação à espera de maceiro para jantar. Logo a partir desse momento vi que ali não tinha companheiros para rasgar as águas bravias da diversidade cultural, que estes contaminados, de marinheiros só tinham mesmo a proa. Pior que isso, tinha à pega toda a malandragem que geria o lugar, o tal que é o meu de eleição.

De forma a proteger a minha boa fama naquele altar sagrado, desfiz-me em diálogo, utilizei várias línguas, mas pior que paludismo ou escorbuto, eles estavam contaminados pelo lambebotismo dos empregados americanos que aturam qualquer coisa dos clientes, cedentos duma gorjeta choruda. E que o cliente é rei, e que o serviço era péssimo, e que eles é que escolhiam e que não sei mais o quê. O malandro encarregue começou-se a chatear, e com o conhecimento que ele tem do mal, comecei a ficar com medo. Ele deu umas voltas, esperou que eles se decidicem e voltou de novo. Mas desta vez veio direito a mim, eu que tinha provado da confecção do chefe. Estava perdido, naufragado na vergonha de ter trazido aquela malta, afogado no medo de ser corrido da próxima vez que ali viesse, aquele que era o meu cais habitual. Mal humorado, confessou-me que só ficavam ali porque tinham vindo comigo. Vim de novo à superfície trazido pelo alívio. Apenas pelo prazer de os ver corridos até poderia ter negado o facto de os conhecer, mas depois alguém me chamou do outro lado do bar para me pagar um copo, e eu acabei por me esquecer de o fazer.

Que a moral desta vivência minha seja um aviso à navegação: os piratas não são como os infiéis e quando avistarem bom porto para atracar, façam passar os vosso companheiros pela mais trerríveis das tempestades antes dos convidarem a atracarem convosco. Só para saberem se se sabem comportar como verdadeiros amantes da diversidade cultural que deveriam ser no seu cargo, esse que é o mesmo que o meu!


* O facto da Suíça não ter costa não invalida qualquer parte da argumentação aqui exposta. Se se alguém insistir, em vez do céu, cai-lhe em cima a mesa de madeira, o astrolábio e o mastro!

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