quarta-feira, fevereiro 16, 2005

 

Carta ao presépio


Ora deixa-me cá alinhavar umas palavritas para o presépio entre ovelhas e galinhas deixado, que, como canta o Chico, para falar "a tarifa não tem graça".

Não trabalho em estabelecimento comercial, mas em qualquer ofício santos são os dias em que o patrão decide abandonar-nos à nossa sorte. Neste caso, à sorte de me pirar mal dão as seis badaladas no relógio da torre da igreja. O sino não se houve da minha sala de trabalho, tão pouco se avista o relógio da torre, que de janelas não é a sala apetrechada, mas viva no paraíso o inventor dos relógios electrónicos, já que sem ele não se lembrava uma pessoa de sair mais cedo.

Lá me pirei eu mais cedo e para quê? Para tropeçar nos centímetros vários de neve acumulada; para bater com as narinas na porta fechada do supermercado com horário demasido suíço; para ficar ao frio à espera do autocarro que se atrasa nestes dias de patinagem no asfalto; para chegar a casa e a máquina de lavar roupa do prédio estar eternamente ocupada. Só faltarão mesmo problemas técnicos na RTPi para me impedirem de assitir ao grande espectáculo de circo de hoje: um quinteto de palhaços à luta pelo lugar principal na tenda gigante da República. Mas antes que venham as dificuldades técnicas ou a palhaçada, aproveita-se o tempo para mandar notícias deste marinheiro ainda atracado.

Atracado porque antes de sair a correr mundo há que preparar a mercadoria, essa que vamos tentar impingir a gentes de outros portos. Especiarias de qualidade recolhidas nos meses passados, que têm de ser muito bem embrulhadas e apresentadas para que os reis destas bandas as aprovem, na esperança que aprovem também o empenho do ouro do reino na nossa diáspora. Não penseis vós porém que é coisa fácil convencer esta corte, que ela é real e nós somos apenas pequenos burgueses de confissão diferente, e apenas há uns meses acabámos de chegar ao ofício. São muitos os malabarismos que temos de fazer, muito o calçado para engraxar, e um trago de sapos a cada dia. "Desenvolverás especiarias de requinte", prometeram-me quando me alistei, mas a verdade é que passamos mais tempo a tentar sobreviver no meio das guerrinhas e quezílias mesquinhas várias entre os membros desta família real, do que a apurar o produto. Resultado: nem nós gostamos do que fazemos, nem a mercadoria sai ao nível pretendido. E o pior estará para vir quando tivermos que enfrentar os mercados de outros cais.

Se o produto final é diferente do previsto, diferente terá de ser a estratégia de venda. E esta começa pela escolha dos portos a visitar. De muito me posso queixar, mas nunca poderei afirmar que não há vontade de mudar o roteiro da venda: a cada dia que passa surge um novo primeiro destino para Abril. Já foi Austrália, mas também já foi Paquistão. Deverão ser os povos do oriente mais exigentes, porque as últimas versões têm-se voltado para terras por onde Colombo tropeçou: hoje vivo na espectativa de saber se o próximo destino será a Terra do Fogo ou o deserto vasto do interior dos Estados Unidos, aqueles que se dizem juntos à volta sabe-se lá de quê!

A certeza de rumo não peço às sereias: a elas outros pedidos lhe destino, até porque da falta de rumo vive o marinheiro. Mas nunca esquecerei as palavras que à saída da barra o velho Zink do Restelo me gritou: "o único porto de abrigo é o porto de partida". E o meu não tem reis, especiarias ou sereias. Existe entre ovelhas e galinhas.


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