sexta-feira, fevereiro 18, 2005

 

A droga na Suíça


A culpa desta vez não cabe à mamã. Ela é toda sim de quem, deus senhor dele o tenha, decidiu dar o impulso inicial a essa magnânima instituição que é o Núcleo de Arte Fotográfica lá da escolinha que não me conseguiu fazer cidadão.

Tinha eu acabado de chagar à capital vindo da minha aldeia resguardada debaixo da batina do senhor prior, e eis que tropeço num panfleto sujo alusivo aos cursos de fotografia numa sala recôndita encovada num subsolo da Alameda. Já por várias vezes havia passado em frente àquele corredor que, de tão obscuro, mostrava-se demasiado sinistro para que eu me atrevesse sequer a espreitar por ele adentro. Ou talvez fosse a forma como via todos os que dele via sair: gente que parecia pertencer a uma grande família a que apenas pertence quem tiver aquele tipo de humor, aquele tipo de conhecimento, aquele tipo de gostos; quem tiver personalidade forte condicente, quem souber fazer-se interessante aos olhos dos restantes. Exigências que eu achava não ter e que me amedrontavam mais do que o ambiente sombrio daquela ala.

Compreendo hoje que terá provavelmente sido por ser a primeira a porta do núcleo que me dediquei vários anos à fotografia, tornando-me viciado no ácido acético. Tivesse a primeira porta sido outra ou a minha coragem maior para investigar todo o corredor, e seria hoje viciado em colírio de fazer chorar, em pranchas de fazer surfar, em tinta de fazer notícias ou mesmo em ou oxigénio de botija de mergulho.

Como o passado não é flexível e mudanças não é com ele, o vício ficou-se pelo ácido, e eis-me em penoso sofrimento por apenas um dia que seja afastado do seu aroma tóxico. Foi exactamente por isso que mal chegado à Suíça indaguei sobre laboratórios disponíveis. O clube recreativo e cultural da empresa tinha um, e ao segundo dia já tinha a inscrição feita. Previ desde logo que poderia ser necessário algum tempo para alguns procedimentos administrativos antes da dose ansiada, dois ou três dias...

Quais suíços de boa tradição, não demoraram a fazer a operação financeira automática, ou seja, a raptarem da minha conta o dinheiro da inscrição. Lá dizem que os automatismos não fazem tudo, e isso foi exactamente o que me explicaram quando passados quatros dias mendiguei por acesso ao laboratório. Tinham de fazer-me uma apresentação ao laboratório, contestavam. Laboratórios, já eu inalei em vários, mas como cada qual tem o seu próprio modo de fazer render as narinas, lá acedi à sessão de introdução.

Em qualquer laboratório uma meia hora de introdução basta. Sou amante da eficiencia, e por isso aceitei esperar mais uns dias para esperar o possível aparecimento de mais algum um caloiro: sempre a coisa se fazia para os dois ao mesmo tempo.

Meia hora é tempo, e todo o tempo se deve optimizar, mas por meia hora não vale a pena adiar a coisa por mais de uma semana para ver se chega mais alguém. Foi exactamente confiante nessa premissa que, na semana seguinte voltei a insistir. E que ainda ficariam à espera de mais gente.

Nas semanas seguintes apelei ininterruptamente, liguei, escrevi, busquei por todos os lados outro laboratório disponível, mas o resultado foi sempre nulo. De Junho a Outubro passei noites de insónia, dias de ardor, reuniões sem calma. Não conseguia fazer nada do que me era pedido e estava em constantes suores e alucinações.

Nos primeiros dias frios de Novembro ligaram-me a dizer-me que tinham por fim outros dois novatos dispostos a iniciarem-se. Marcaram a data, e os dias até lá foram de constante angústia. Na tarde do dia marcado, o telefone tocou de novo para que uma voz sádica me dissesse que havia um plano de actividades semestral a cumprir e que como no corrente não constava uma sessão de apresentação do laboratório, esta teria de ficar para o ano seguinte! "Pela porra duma meia hora?" gritei eu em falar estrangeiro no meio do escritório, em frente ao chefe, ao chefe do chefe e à empregada da limpeza.

Gritar não resolveu o assunto, e tive de saír de imediato para o supermercado. Com discussões e explicações a chefes e técnicos de higiene, acabei por sair já à meia tarde, hora avançada à qual os supermercados suíços já estão fechados. Corri então para casa, e bati à porta de todos os vizinhos para recolher todo e qualquer vestígio de vinagre que pudesse haver no prédio. Entrei em casa, fechei portas e janelas, enchi a banheira de vinagre, liguei a ventoinha e o aquecimento no máximo para que a evaporação se desse mais depressa. Descansei então noite adentro num paraíso que há já meses não visitava.

O Natal deu-me tempo para matar saudades do Núcleo de Arte Fotográfica, mas à volta em Janeiro já sentia de novo a vontade de assassinar quem não se decedia a dar-me acesso ao laboratório. Agora era o início do ano, o programa ainda não tinha sido redigido, depois foram as férias do ski, depois os nevões, e só hoje, ao fim de oito meses pude por fim dedicar-me à magia de fazer aparecer imagens ao odor do ácido.

Eis-me por fim em casa, calmo o suficiente para vos escrever sobre o flagelo da droga na Suíça, que não é flagelo nenhum, tão poucos são os drogados pobres que por aqui há. Coisa que não é difícil de explicar, vista a flexibilidade suíça, essa sim constituinte dum problema social gravíssimo por estas bandas.



Comments:
olha lá pá: ainda que eu possa estar a menosprezar a versatilidade de um chuveiro, tu não tens banheira no teu estúdio suiço... onde é q eu tu andas a pernoitar, o meu granda malandreco? ummm??
 
olha, nota-se que tenho 1 olho à camões, escrevi mal: onde se lê "q eu tu andas", leia-se "que tu andas"
 
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