segunda-feira, abril 18, 2005

 

Saudades de mim próprio


Atiraram-me aqui há dias à cara o que um tal de Séneca havia dito. Normalmente não sou muito sensível a citações retiradas do seu contexto, mas esta atingiu-me com tal violência que me deixou de rastos, prostrado no fundo da auto-realização. Teria o senhor dito (ou escrito, o que para efeitos castradores de auto-realização vale o mesmo), que quanto mais se viaja mundo fora, menos se viaja dentro de si próprio. Se não foi bem isso, teria sido algo semalhante, incerteza que é alheia ao efeito.

Depois de duas semanas em Buenos Aires em que se trabalharam umas 30 horas diárias (pelo menos; a incerteza aqui também não interessa, mas pode justificar-se com o cansaço), sem um reles minuto livre para sentir a cidade ou o país, não é Séneca quem se quer ouvir. O senhor por detrás do balcão do banco ainda vá que não vá, que sempre somos robôs aceitavelmente pagos, e isso dá muito jeito como desculpa a dar à consciência para aceitar a carga de labor. Isto, tivesse eu tempo de ir ao banco.

Com Séneca e sem o senhor do banco, o fim-de-semana chegou, com promessas de uns fantáticos dia e meio livres. Os demais zombies que comigo trabalham apressaram-se a apanhar um avião para o norte do país, onde a água cadente atrai fãns de cataratas e turistas ávidos caçadores das atracções ditas "imperdíveis". Convidaram-me para que os seguisse, mas estando eu no fundo em que Séneca me deixou, onde encontraria forças para atingir o patamar inferior das escadas do avião, e para as subir com o sucesso dum executivo em fim-de-semana? Por outro lado, não tinha eu escolhido este emprego para conhecer o mundo? E agora que estava do outro lado do mundo, fechava os olhos às suas atracções? Era assim que Séneca me afastava do cume da minha auto-realização?

Vivemos cada dia da semana exclusivamente entregues aos objectivos da empresa, divididos em prazos curtos de alguns dias, numa constante urgência de os cumprir. Este apressar diário elimina em nós qualquer resquício de existência pessoal durante a semana, e torna o corre-corre absolutamente indiferente ao lugar em que estamos. Poderíamos mudar da Rússia para a China durante a semana sem nos apercebermos de qualquer diferença. Mas a vantagem de viajar vem ao fim-de-semana. E que fazemos então? Atiramo-nos de cabeça às atracções locais num seguidismo de guias turísticos, numa mesma pressa que a semanal, uma vez que só vamos estar aqui durante um mês. Tentamos aproveitar a correr o facto de estarmos num país diferente para colocar mais um carimbo na nossa lista do "eu estive lá" e tirar fotografias para mostrar orgulhosos à familia e aos amigos. Se durante a semana medimos a qualidade do nosso trabalho pelo aumento dos indicadores de performance, durante o fim-de-semana tomamos como indicadores da qualidade do nosso lazer o número de carimbos e o número de fotografias. Numa ocasião e noutra abstraímo-nos de pensar como indivíduos distintos com personalidade própria: ora são os objectivos da empresa que nos preenchem, ora as atracções sempre diferentes que nos resguardam o espírito duma liberdade demasiado exigente e pouco rentável. Quanto mais viajamos e quanto mais depressa o fazemos, menos viajamos dentro de nós próprios.

Recusei amavelmente o convite, consiente da aplicabilidade das palavras de Séneca à situação. Envergonhei-me por não conseguir afinal conhecer o mundo, mas sobretudo por ter deixado de me desenvolver como um indivíduo distinto com uma personalidade própria, desenvolvimento para o qual é necessária uma vida para além do trabalho durante a semana, e para além do turismo ao fim-de-semana. Ao zarpar do Restelo acabei por perder essa vida, sem no entanto ganhar a oportunidade de efectivamente conhecer o mundo. Séneca fez-me ver o quanto me desviei desse caminho que me tornaria no ser independente que almejava. Séneca fez com que me apercebesse na minha falta de auto-realização.

Escondo-me agora dessa vergonha dentro dum café-livraria de Buenos Aires, numa mesa a meio caminho entre o frenesim da rua e o barulho da máquina de café. Busco dentro de mim uma forma diferente de estar nesta forma de vida, uma alternativa a desistir e voltar. Os livros de Pessoa e Saramago dispostos nas estantes recordam-me as constantes perguntas sobre as saudades que sinto do meu país. Muito maiores que as saudades de Portugal são as saudades que sinto de mim próprio.

Comments:
deixa lá. assim como assim, piazzola é melhor. eu gosto mais.
 
Buenos Aires? É cada surpresa... não trotes tanto mundo tão depressa, senão ainda esgotas o globo (no sentido de já teres tudo visto) e lá tens que embarcar para Marte!

Mas nesse fim de semana, eu faria o mesmo que tu! Uma cidade com tanto carácter, com tanto para ver e fazer, com tanta história, é de certeza muito melhor que uma praia standardizada "para inglês ver", com painéis publicitários a tapar as favelas, e palmeiras plantadas milimetricamente para ficar bem na fotografia!

Assim podes respirar a cidade, ver as livrarias, conhecer as gentes e como vivem, sentir as ruas e os cheiros... tudo isso que é conhecer o Mundo e os Povos!
 
não concordo com o seneca.
a verdade é que as viagens pra dentro de nós não implicam mudança de lugar, mas as mudanças de lugar podem/não implicar mudanças dentro de nós.
parece-me que te aconteceu esta última.
andas a experimentar-te e a escolher-te, e pra isso é preciso uma coragem grande.
torço por ti.
 
olha que, nao é para desmoralizar o séneca, pá, mas eu cá acho que mesmo que tu estivesses por cá ias ter saudades de ti na mesma.
CRESCER (seja lá para que lado fôr) implica deixar p tráz aquilo que se foi: conhecer-se a si proprio é olhar um work-in-progress, aqui ou na China.

e se formos conhecendo o mundo nesse processo, tanto melhor! olha que porra!
Dá-lhes!!!
 
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