segunda-feira, agosto 22, 2005

 

Redang

Foi para escapar ao fumo que nos fizemos à estrada, em busca das prometidas praias paradisíacas do oriente malaio, perdidas numa ilha do mar chinês.

Saímos cedo, porque um colega local nos tinha calculado a jornada em quatro horas. Quatro que passaram a ser seis quando a auto-estrada acabava já ali à saída da capital: "vou-me chatear com o colega quando voltar"; seis horas que passaram a sete quando não havia placas a meio do caminho e nos perdemos: "vou deixar de falar com o gajo quando voltar"; sete horas que passaram a oito quando a estrada começou a atravessar todo e qualquer vilarejo pejado de semáforos: "vou-lhe mas é dar um enxerto de porrada"; oito horas que passaram a nove quando ninguem nos sabia indicar o caminho para fazer os últimos vinte quilómetros: "isto vai ser o Apocalipse malaio quando voltar ao escritório na segunda-feira".

Como não há cabo demasiado difícil de ultrapassar para quem do Restelo zarpou, foi como a inspiração do Vasco, do Pedro Álvares e de outros tantos marinheiros que dez horas depois chegámos por fim ao porto de acesso à ilha. Com os trunfos dos grandes navegadores já gastos, e sem musas à vista (a única mulher nas redondezas era a esposa do barqueiro, a quem já faltavam todos os dentes da frente), foi entregues a nós próprios que subimos a um barco que nem o Tejo parecia ser capaz de atravessar.

Mal atravessámos a barra, já o motor debitava potência máxima, que a travessia ainda dá para uma hora. O mar ondulava ligeiramente, e o rasgo que o casco do barco abria na água salpicava-nos os lábios de sal, deliciosa lembrança de vivências à beira mar. E não fosse a melancolia ser em demasia, à medida que deixávamos de ver a costa, o barco agitava-se cada vez mais, alimentando a adrenalina, tão esquecida em semanas de trabalho enfadonhas em frente ao computador.

O povo terá a sua sabedoria, e diz ele que para tudo há peso e medida apropriados. Para a gula da adrenalina havê-los-á também, e desconfiei que ela já estaria empanturrada quando uma vaga varreu o convés e o barqueiro se sujeitou a um golpe de rins para pôr o barco de novo na sua rota. Banhos não são coisa boa para a digestão, e comecei a ficar preocupado com um tal manjar da adrenalina. O homem do leme pareceu compreender o meu receio, e respondeu à minha expressão com uma gargalhada nervosa: "isto é normal, amigo". Mas pelo sim, pelas ondas, pelo não, decidiu reduzir a velocidade. Quiçás como prova de medo terá o mar entendido esta decisão, e lá achou que seria boa altura para fazer avançar a cavalaria: a primeria onda inclinou o barco uns 45 graus e agarrei a mochila e a máquina fotográfica; a segunda onda quase o virou e larguei a mochila; a terceira (é sempre desta que é de vez) mandou-me borda fora. "Homem ao mar" foi a única coisa que me lembrei de dizer nessa altura, mas logo me apercebi da incorrecção e inutilidade do grito: não só éramos vários os homens no mar, como também não restavam potenciais socorristas a bordo do barco virado do avesso.

Estiquei o braço direito (o da superioridade) o mais que pude e ergui no ar a máquina fotográfica, qual Camões defendento os seus poemas da raiva do mar; com o braço esquerdo (o da luta) tentava manter-me à tona de água. Os salpicos deliciosos eram agora golfadas de água sofocantes directamente boca a dentro e era dificil não sucumbir às ondas avassaladoras. Uma vaga maior cobriu-me a cabeça, mas foi com todo o esforço que concegui manter seco o álbum digital da minha arte. Uma outra ameaçou-me de morte, mas novamente fiz uso de todas as minhas forças existentes e virtuais para salvar o meu reino.

Foi apenas quando já pouco restava das forças existentes ou da imaginação para gerar forças virtuais, que uma embarcação bastante maior nos recolheu. "Salve, ó irmão, esteja contigo a graça de todos os deuses, sejas tu malaio, chinês, indiano, indonésio, inglês, holandês, português, marciano ou mesmo o filho da puta que me disse que eram só quatro horas de viagem". Atirei-me ao soalho do convés salvador e adormeci no alívio de ter ainda comigo os bits da minha criação. Não fosse esse esforço sobrehumano e nunca teria podido, qual Dante, partilhar convosco a visão do paraíso.


Redang Island, Agosto 2003


Comments:
ó surfista: ele há que que viajar sempre acompanhado de bóia amarela com patinho, e os comprimidos da mãe para o enjoo - zink dixit.

ao menos a ilha era habitada?
por umas galinholas para jantar?
 
e eis que, após hercúlea tarefa de atravessar águas revoltas assombradas por monstro sem dentes (confundi-lo com a esposa do barqueiro era da febre!), chegado à inóspita ilha virgem, o marinheiro a baptizou:
XAPANGUE ISLAND!

(redang é, obviamente, erro do tradutor menos zeloso...)
 
Com toda a excitação de fugir ao fumo, até das braçadeiras insufláveis me esqueci, quanto mais da bóia do patinho.

A ilha era de facto habitada e por gente muito sinistra. Mas isso fica para uma próxima oportunidade...
 
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