quinta-feira, setembro 15, 2005

 

Especificidades portuguesas em Paris


Já tinha percorrido a cidade turistica de lés a pavio, exorbitância inútil da Torre Eiffel e interminável sofrimento do Museu do Louvre incluídos. Foi por isso que decidi deixar o tempo dum fim-de-semana em Paris escorrer desinteressadamente. Mas qual político doméstico, permiti que uma boa ideia se tornasse num erro estratégico ao dar-me à influência de grupos de pressão. Nem tive sequer direito a encher bolsos com pagamentos de favores, não fosse o grupo chamar-se família.

"Família para aquelas bandas?", estranhou o sueco, para quem tal conceito incluí apenas pais, irmãos e filhos. Que não estranhe então a Comissão Europeia quando falamos duma "especificidade portuguesa" quando nos desculpamos por não cumprimos o (pouco) que de nós é esperado. É que com essa herança salazarista, nós, os portugueses, temos uma família muito mais numerosa e complexa a gerir: o reumatismo do avô, a bisbilhotice da sogra, a tagarelice da tia, o sucesso do primo, o tradicionalismo da madrinha, o olhar sedutor da prima, a dentadura da avó, a desconfiança do sogro, as mamas da irmã dela, o carrão do marido da irmã dela, a matemática dos primos em segundo e terceiro grau, o cartão de vacinas do cão, o cio da gata, a alpista do piriquito, e, nas melhores famílias, a toalha "só para quando o senhor prior cá vem". Está bom de ver que a gestão de toda esta complexidade nos deixa pouco tempo para contribuir para o aumento da productividade nacional. E nem valerá a pena quantificar o que acontece ao défice quando há que comprar prendas de Natal para toda esta gente, mas refira-se a possibilidade de ser deste facto de que advêm todos os pares de meias e de cuecas que o orçamento esticado lá vai permitindo distribuir por toda a tribo. Não levei o sueco, mas talvez o devesse ter levado para que se apecebesse do que é "esta triste sina de ser português", que ainda consegue ser mais triste do que utilizar o lugar-comum que acabei de citar!

Mesa extendida para que cobessem dois pares de tios e quatro primas, a toalha não foi a do senhor prior, mas o menu foi apurado. Como é típico, tive de proteger o inventário no meu prato contra os intentos de simpatia logo nas entradas: um esquivar constante entre "Vá lá, mais uma fatia de jambon", e "e o foie gras?". Volvido o prato principal, não poderia faltar a tradicional conclusão "então, não gostaste?". Ainda tentamos contrariar, que nada disso, "gosto sempre muito deste petisco, que aliás estava muito bem preparado", mas acabamos invariavelmente por sucumbir ao argumento do chefe da família, que do seu topo de mesa remata "não gostou, não, afinal só repetiu uma vez; já te tinha dito mulher para que fizesses outra coisa". E por aí, ou por qualquer outro detalhe de importancia nenhuma recomeça a contínua discussão familiar: se não foi por ter feito arroz em vez massa, será porque não se souberam comprar as couves, "que para mais custam um balúrdio e esta gente cá em casa não sabe dar valor ao dinheiro", porque não se abriu o melão que estava mais maduro, porque não se insistiu com o convidado para comer mais queijo, porque "a desorganização nesta casa é maior do que nas outras", porque, porque, porque. Fossem os portugueses utilizar toda esta imaginação para extender discussões familiares ad eternam para desenvolverem trabalho artístico, Lisboa seria a capital mundial da arte; Nova Iorque, Londres e Paris que se cuidem!

Haja na Terra homens ou mulheres da coragem que não tive para explicar-lhes que maior prazer que mais uma pratada de arroz, ou uma fatia de jambom ou um naco de fromage, é poder visitar alguém sem termos de nos sentir desconfortáveis quando no meio e quando sujeito destas discussões familiares; de que criticar as falhas da casa não as desculpa ou ameniza, antes pelo contrário, faz com que o convidado repare nelas, coisa que doutra forma nunca faria.

Depois de todo o martírio da refeição, ainda temos que negociar as nossas próprias opções pessoais: "nada disso, ficas cá a dormir, onde é que já se viu vires à nossa cidade e ficares num hotel", insistência que dificilmente demovem os argumentos "vou sair com uns amigos", "vou voltar tarde", "já não os vejo há muito tempo", "quero estar à vontade", "não quero ter de conduzir para voltar a meio da noite para os arredores", "a empresa até me paga o hotel porque tenho de estar ao serviço na segunda".

É apenas após longa negociação que se chega a um acordo, "vai lá com Deus, mas passas cá amanhã para tomar café". Saímos por fim, já tarde, embuchados ainda da jantarada, cansados de ouvir toda a rezinga, esgotados depois duma negociação feroz, e esperamos apenas que o resto do fim-de-semana, que se queria desinteressado, cumpra essa grande missão de nos colocar de novo em forma para o café do fim de Domingo.


Bar Charlie Birdy, Paris, Setembro 2005



Comments:
ahhhhhh!!!!!

que visão maravilhosa. a tua ceia!

então e calhou-te o borrego guisado com mel e açucar, e laranjinhas da china?
com cus-cus?

ainda bem que deixei de comer carne há alguns meses....

e isso tem tudo a ver com a luz vermelha de bar na foto!
ele há fins de semana ecléticos, há-os sim senhor!
 
Certo, pizza até vai, mas sem ananás!
 
que bela foto!
 
Agradecimentos corados!
 
corado? tu!

olha a modéstia a cheirar a engodo!
 
Foi da luz vermelha do bar...
 
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