segunda-feira, dezembro 20, 2004
Emoção máxima
Ainda estou abalado, a pressão sanguínea ainda reflecte o choque psicológico de há apenas uns momentos. Os dedos ainda tremem sobre o teclado e o fluxo de ideias é quase tão desorganizado como o nosso governo demissionário.
Meses depois de ter chegado, já tinha quase por garantido que nunca veria um incidente tão emocionante nesta pasmaceira de neve e kirch feita. De tal forma toda a vila vibrou, que do alto das montanhas alpinas se temeu uma avalanche. O vento veio logo a correr, arrancando as últimas folhas das parreiras. O edelweiss fechou as pétalas assombrado e o vinho azedou de imediato nos tonéis. As avelãs agitaram-se dentro do chocolate e até o rato deixou por uns momentos de esburacar o queijo. O pároco fez tocar os sinos a rebate e as vacas nas colinas responderam ao desafio com os seus badalos. Há mesmo quem jure ter visto ondas no lago Léman.
A catástrofe foi impressionante e o povo saiu à rua. Um octogenário disse aos microfones da rádio da terra que coisa igual só tinha visto na sua meninice, "quando tinha os meus oito ou treze anos, mas na altura não havia sirenes". Sirenes que pareciam vir de todos os lados: dezenas de quartéis de bombeiros e esquadras de polícia marcaram presença, sedentos que estavam de acção havia já largos anos. A última corporação a chegar desculpou o atraso com o facto de ter de limpar as teias de aranha que envolviam a correia de transmissão da última viatura utilizada em missões de emergência.
Não foi um, senhoras e senhores! Não foram dois, meninas e meninos! Por esta catástrofe levam não um, não dois, mas três carros amachucados numa colisão em cadeia. Até farolins partidos houve! E a fúria dos condutores? Chegou-se mesmo a ouvir um palavrão! "Ao que este mundo chegou!" resmungava um idoso saudosista dos "velhos tempos em que ainda havia educação!".
Será este um sinal de que a Suíça atingiu o limite máximo da insegurança e da imoralidade? Será aqui o epicentro do Apocalipse? Com que velocidade se espalhará pela velha Europa? Estaremos nós preparados para ver semelhantes catástrofes em Portugal? A incerteza aterroriza-me e os dedos mostram-se agora ainda mais inseguros na escolha das teclas.
O seguro morreu de velho e, pelo sim, pelo não, refugio-me já hoje em terras lusas, numa fuga a esta loucura helvética!
segunda-feira, dezembro 13, 2004
Há mar e mar
Desta vez não fui eu. Não, nada disso, já me bastam as várias séries de doze notas com que tive de contribuir para a saúde fiscal dos transportes públicos suíços. Mais uma e voltaria à lusa terra, nem mala de cartão carregando, que até essa teria de vender depois de tão onerosas aventuras no autocarro.
Não era o meu chefe, mas poderá vir a ser, e quem poder vir a ser, bom tratamento deve de nós terá de receber, dizem as regras da boa escalada rumo ao cume do sucesso. Mas se dum chefe se trata, um dos que já muitos degraus dessa escada calcorreou, desculpas nenhumas se adimitem para explicar a entrada num autocarro sem as preciosas peças metálicas que dão direito ao papelinho que faz as delicias do senhor revisor. E pois não é, que mesmo sem desculpa alguma, o senhor meu possível futuro chefe sentou-se ao meu lado sem moedas ou bilhete? E eu é que tinha de fornecer solução? Quem vai para o mar avia-se em terra, e aquilo com que eu me tinha aviado jazia já no bucho da máquina. Sem passados marinheiros, o homem tinha descuidado a preparação do apetrecho, e era agora náufrago em busca de salvação, nem mesmo eu lhe podendo valer.
Se o deserto é deserto, mais deserto é o mar. Mesmo sendo deserto, o deserto apresenta cor de areia e cor de céu, não como o maroto horizonte marinho, que insiste em fazer confudir água e céu, desertificando ainda mais o mar e tornando mais fortes as miragens. Tão forte era esta, que realidade se tornou, e a sereia que ao pobre náufrago apareceu, atirou-lhe uma bóia, daquelas que também as máquinas de bilhetes gostam.
O náufrago em terra firme deixava de ser náufrago, voltando a ser chefe de outros que não eu, meu possivel chefe num futuro que não longínquo. A uma sereia destas oferecer-se-ía a vida, não fosse a vida deste estar já num patamar elevado da escada, uma altura a que ninguém se dá ao trabalho de subir para a cobrar. Com muitos agradecimentos se pagou então a sereia, jurando que mais não queria.
Não queria mais, mas mais teve de receber. Não do náufrago, que esse como ficou esclarecido já voltou a ser chefe. Recebeu do tenebroso mostrengo que fragilisou o navio em que seguíamos. "Sereia ao mar", gritámos ambos, mas era já tarde de mais: o autocarro seguia a sua linha deixando-a para trás, indefesa nas garras de tão cruel criatura, não possuindo sequer um passe social para se defender. Esse tinha ficado esquecido nos seus aposentos, e qual dentada letal, a sereia recebia agora uma requisição para pagar uma dura multa de doze.
quarta-feira, dezembro 08, 2004
Imenso
Aguardávamos nos balneários nervosos, quando a ordem de saída foi dada. Em passo de corrida escondemos o medo por detrás das vozes dos adeptos que vinham através do túnel para o qual nos dirigíamos.
Descemos as escadas até à entrada do tunel, e agora o clamor das bancadas arrepiava-me a pele dos pés à cabeça, elevando a cada passo meu a emoção até um estado de pré-gloria.
Os meus músculos continham a força do mundo, o meu espírito a motivação perfeita. Era agora, seria ali o nosso momento de batalha final, a imortalidade à distância de um golo.
Repleto desta energia, fiz-me ao túnel que dava acesso ao relvado. O êxtase da multidão elevou o nosso passo à velocidade máxima e fez ferver o nosso orgulho. A cada passo nele dado, a emoção crescia com o chamamento das claques. E crescia, e crescia, e crescia. Sentia-me quase senhor do mundo, todo o podersoso.
Até que o palhaço que tinhamos por guia, tentando sem grande esforço reproduzir o incentivo psiocológico do comandante dum batalhão de pára-quedistas à saída do avião, me deu uma palmadinha nas costas, empurrando-me para um trambolhão na minha realidade de mero visitante do imenso Estádio Jornalista Mário Filho, vulgo Maracanã.