quinta-feira, outubro 28, 2004
Espírito
Jantar de equipa de projecto, todas as quartas, para construir espírito de equipa. Uma construção fictícia, claro está, até porque uma verdadeira equipa não necessita de marcar jantares num dia específico da semana para ter espírito. Com jantar ou sem ele, o que nos fará deixar o leito quente de manhã será sempre o salário ao fim do mês, e o que nos espicaçará o esforço será a promessa de promoção, quais burros a quem penduraram à cabeça uma cana com uma banana pendente na ponta, que se balança à frente dos olhos e que parecerá estar sempre muito perto, mas que será impossível de alcançar.
Então jantemos, bebamos o néctar da cevada, e dividam-se os pratos, para o espírito ser maior. Só não percebo se foi também em prol do espírito que num restaurante tailandês pediram especificamente os pratos mais picantes, exactamente naquele dia em que ninguém teve tempo para um almoço decente, quanto mais para enganar a fome com uma sandes a meio da tarde. Matar a fome lancinante com picante em bruto é tortura ainda maior à de ter de tratar da sede com vinho da Adega Cooperativa da Vinha de Baixo. Sede que, estando a língua em picantes apuros, teve de se aniquilar com o que havia à mão. E se houve quem pedisse apenas pratos picantes, logo apareceu outro pedinte em uníssono que tratou de garantir que em cima da mesa não haveria bebidas que não fossem de família alcoólica.
Postas as coisas em termos que tais, não será necessário explicar porque é que se perdeu a conta aos giros dos ponteiros do relógio, conhecidos por terem a mania de não parar quietos, nomeadamente aqui na Suíça. Perdida a conta aos giros dos ponteiros, perdida também a conta aos giros do autocarro, de cujo último já só vimos a fumaça ao fundo da rua. O que eu já não me atrevo a explicar é porque é que o prestável automobilista que circulava no sentido contrário tenha parado, feito inversão de marcha e nos tenha proposto uma boleia até ao autocarro mais próximo. Ainda me questionaram os meus botões sobre a sensatez de aceitar tal proposta, mas as cervejas por detrás deles fizeram o seu papel de fêmeas sedutoras, e à sedução de não ter de caminhar uma hora me rendi eu. Não sei se seriam grandes mulheres por detrás de grandes botões (três centímetros de diâmetro), mas a verdade é que o tipo ultrapassou o autocarro e deixou-me mesmo em boa paragem para o apanhar, sem sequer pedir gorjeta!
O tipo não era da equipa, mas tinha mais espírito do que o picante, a cerveja, o salário e a promoção todos juntos!
terça-feira, outubro 26, 2004
Desiludam-se amigos
Desiludam-se amigos, trotar mundos não é vida fácil. Veja-se o caso da semana que acaba de terminar: trabalhei setenta horas e não descobri legislação internacional de trabalho que me valesse; o disco do computador não gosta de latinos e apagou-me os ficheiros todos; a máquina de chocolates achou-me forasteiro e ficou-me com as moedas sem me dar o chocolate; a máquina de lavar a roupa achou-se grávida e decidiu largar águas estéricas quando me tratava da vestimenta; o cesto da roupa ficou com medo de ser o pai e pirou-se escadas abaixo quando eu carregava peúgas lavadas edifício acima; fui-me abaixo no ginásio exactamente no preciso momento em que a suiça mais gira ía a passar; houve qualquer coisa que se notou ao de cima quando estive apertado contra ela num autocarro apinhado em hora de ponta; o senhor pica achou-me com cara de quem já tinha saudade de largar doze notas; a senhora secretária achou-me com cara de encarregado de mudanças; a máquina voltou a não me dar o chocolate quando pus mais moedas; ouvi uma descompostura do chefe num incompreensível alemão; entornei o café sobre o meu fato italiano; entornei o almoço francês sobre o fato dum dos directores contra quem choquei no refeitório; descobri que a pessoa a quem perguntei se me vinha arranjar o computador era o chefe do chefe do meu chefe; baralhei-me ao falar estrangeiro e disse numa reunião que os motoristas tinham de be good looking em vez de look good; aluguei um DVD americano que não funciona no meu leitor europeu; cortei uma unha com uma tesoura made in China e agora tenho o dedo inchado; perdi os meus dois melhores amigos na lotaria do amor e tive de curar a mágoa com vinho suiço carrascão!
Mas o pior mesmo, aquilo que foi mesmo mesmo mau, foi ter escorregado num cagalhão!
sexta-feira, outubro 15, 2004
Cavalo dado
Também tem o seu lado positivo o facto da Suiça ter tão bons lavadouros de dinheiro: há sempre uma loja de relógios de luxo em cada esquina. Assim, mesmo não tendo relógio, consegui aperceber-me dos meus trinta e cinco minutos de atraso quando cheguei à porta do restaurante. O jantar tinha sido anunciado como internacional, mas quando o convite é feito por latinos, deseducado é quem chega a horas e faz o organizador sentir-se mal por ser o último a chegar. Meia hora deveria bastar para evitar tal afronta, e entrei confiante.
A única pessoa do grupo que eu conhecia estava sentada ao centro da mesa, e a única cadeira que estava vaga encontrava-se num dos extremos. Ele predispôs-se de imediato a mudar-me o poiso, mas acabei por não perceber a nova estratégia de colocação, uma vez que acabei por me sentar no outro extremo, onde me encontrava à mesma longe dele, e rodeado de desconhecidos. Só podia ser para que eu fizesse novas amizades. À minha volta estava um egípcio obeso, um vietnamita tísico e uma mexicana alta, esbelta e branca. Noves fora nada, a coisa só poderia ter sido arranjada com a mexicana. Ainda pensei que o gajo me quisesse lixar, e que me tivesse feito presa dum casal homossexual egipício-vietnamita à procura de festa a três, mas o interesse que a mexicana mostrou desde logo na minha conversa inútil garantiu-me que o assunto seria com ela. "Mas repete lá outra vez donde vens?". Eu no México só tinha conhecido flácidas, baixas e morenas...
O jantar acabou antes da passagem do último autocarro, e como tinha de ter de ficar a pé para ter desculpa para ir com ela para casa, propus um copo num bar ali perto. Uma cerveja depois e, azar dos azares, a montra da loja da Rolex dizia que eu já não tinha como chegar a casa. "Não te preocupes, eu levo-te". Quando chegámos ao parque de estacionamento, tentei imaginar qual seria o carro duma mexicana. Provavelmente um daqueles pedaços de chapa velha que contaminam as selvas maias: aquele 205 à esquerda ou o Panda à direita? Nenhum dos dois, que a miúda movia-se com o estilo dum Audi TT!
Mesmo fora da barra do Tejo, eu não poderia deixar de ser um português acolhedor à porta de minha casa: "subimos para um chá?", apostei eu na sofisticação. Nunca entre eu num casino, que perderei até a roupa interior. Percebi a minha incapacidade para apostas quando ela mostrou mais apetites de tequilha. Perdição maldita, eu não tinha tal néctar nos meus aposentos. "Não te preocupes, bebemos em minha casa". Teria eu percebido bem a conjugação do verbo no plural, ou teria eu de melhorar a minha compreensão de espanhol? Ela estava mesmo a fazer-se de novo à estrada sem requerer que eu saísse. Casino não, mas no totoloto jogarei: estou numa onda ganhadora!
Ela vivia numa penthouse com vista para o lago, maior até que o Clube Recreativo e Cultural da minha aldeia! "Vamos então à tequilha", e o meu estômago amedrontou-se com a lembrança das tequilhas baratas nas tascas obscuras da Cidade do México. Mas de barato, a garrafeira nada tinha: envelhecidas em cascos, já dos seus vinte anos, as tequilhas apresentavam-se apetitosas.
Depois de provar de todo o ramalhete, uma cervejita é que ia bem para apaziguar o bucho. Será que ela tinha disso? Provavelmente apenas Coronas ou ruindades afins, pensava eu. Mas ao abrir o frigorífico, descobri, ó musa das musas, Sagres. Sim, essa mesmo, a mais verde-rubra das cervejas britânicas!
Tudo isto parecia bom demais para ser verdade, mas ninguém se preocupa com o dente do cavalo que é oferecido. Considerei apenas que, tantos anos depois de ficar a ver a sorte dos outros, tinha finalmente chegado o meu dia. A esmola era de facto grande demais, mas não sendo eu pobre, não tinha direito a desconfiar, e recostei-me no sofá a saborear a vitória.
Está provado cientificamente, li eu outro dia numa revista, que a cerveja não se compra, apenas se aluga. Por esta não tinha pago preço ou aluguer, mas não seria por isso que a podia juntar à minha fortuna, e lá tive de lhe dar o destino normal.
Quando regressei, pensei estar noutro lugar, outra dimensão. As luzes estavam apagadas e havia um cento de velas acesas espalhadas pelo espaço da casa, algumas delas alinhadas no chão, desenhando um caminho a seguir. Ao fundo deste corredor sagrado, fui encontrá-la de robe vermelho semiaberto, a chamar-me num sussurrar demoníaco, de braço direito esticado e indicador curvando-se suavemente.
Ainda pensei em voltar para trás, talvez tivesse saído da casa-de-banho pela porta errada, por alguma passagem secreta que dava acesso a uma fenda espacio-temporal, a porta que teria levado Dante no seu passeio infernal. Tentei recuar, mas já era tarde demais, já os seus braços me envolviam, já o meu corpo cedia aos seus comandos em direcção ao leito.
Deitou-me e cobriu-me com o seu corpo esguio. Esticou-me os braços e entrelaçou-os nas barras da cabeça da cama de ferros. Arrancou um a um os botões da minha camisa, e serpenteou-me o tronco com beijos e pequenas mordidelas. Revolveu-se sobre mim, até que agarrou também ela os ferros e me pressionou o baixo-ventre com o peso do corpo. Nesta luta de forças não me poderia deixar controlar: libertei os braços, agarrei-a com força, rodei-lhe o corpo e passei eu a ficar por cima. Ela não pareceu importar-se, tal era a face de prazer que mostrava. Parecia até que tinha querido gerar esta fúria em mim. Abri-lhe o robe e percorri o seu corpo desde o ventre até ao pescoço.
Quando virei a cara para o lado para receber os seus lábios sobre a minha face, vi num pedestal ao lado da cama uma estátua enorme da Virgem, que me olhava de cima para baixo com ar de sádico gozo, como de quem condena alguém à mais terrível tortura. Mirei a minha anfitriã e reconheci nela o mesmo olhar fatal. Afastei-me, e pensei ver à luz diminuta das velas as barras da cama a tomar a forma de tentáculos, movendo-se na minha direcção.
Corri porta fora o mais depressa que pude, sem sequer olhar para trás, sem me despedir da tequilha, da Sagres ou do Audi TT. Sou agnóstico, mas se puder ficar longe do fogo do inferno, tanto melhor!
sexta-feira, outubro 08, 2004
Marinheiros Sós
ZT: Eu cá pús-me a milhas.
CA: Eu fiquei quieto, embalado, parado.
ZT: Não paro nem nas Antilhas.
CA: Permaneço boiando com vagar, ciente do ondular.
ZT: Saí da sepa torta.
CA: Eu não saí. Preferi vogar na quietude.
ZT: E o último que feche a porta!
CA: E porque não deixá-la aberta e espreitar.
ZT: Quero espreitar por todas as frestas.
CA: Não há frestas quando há portas fechadas.
ZT: Beberei copos em todas as festas.
CA: Mas eu estarei em todas as festas de anos, a ver os que me são chegados crescer.
ZT: Quero conhecê-las a todas, loiras eslavas ou asiáticas amarelas.
CA: A quantidade nunca foi a minha vontade!
ZT: Vida boa é tropeçar em becos e vielas.
CA: Vida boa é a paz, sem stress.
ZT: Não tenho razão para ficar.
CA: Eu tenho muitas razões para ter ficado.
ZT: Vou passar a vida a viajar.
CA: Eu também, mas sem me mover.
ZT: Não me põem trela.
CA: Ancorar não implica amarrar.
ZT: Não há âncora que segure a minha vela.
CA: Fartei-me! É que a onda profunda, ainda vá lá. Agora, tudo a rimar! Deves-te achar uma metáfora do Camões moderno. Eu sei que era para pormos um pouco de nós nestas linhas, mas tu já paravas!
ZT: Só páro quando não houver mais fundos.
CA: Ok!
ZT: Eu sou o Zé Trotamundos.
CA: Eu sou o Chico Ancorado.
CA: Eu fiquei quieto, embalado, parado.
ZT: Não paro nem nas Antilhas.
CA: Permaneço boiando com vagar, ciente do ondular.
ZT: Saí da sepa torta.
CA: Eu não saí. Preferi vogar na quietude.
ZT: E o último que feche a porta!
CA: E porque não deixá-la aberta e espreitar.
ZT: Quero espreitar por todas as frestas.
CA: Não há frestas quando há portas fechadas.
ZT: Beberei copos em todas as festas.
CA: Mas eu estarei em todas as festas de anos, a ver os que me são chegados crescer.
ZT: Quero conhecê-las a todas, loiras eslavas ou asiáticas amarelas.
CA: A quantidade nunca foi a minha vontade!
ZT: Vida boa é tropeçar em becos e vielas.
CA: Vida boa é a paz, sem stress.
ZT: Não tenho razão para ficar.
CA: Eu tenho muitas razões para ter ficado.
ZT: Vou passar a vida a viajar.
CA: Eu também, mas sem me mover.
ZT: Não me põem trela.
CA: Ancorar não implica amarrar.
ZT: Não há âncora que segure a minha vela.
CA: Fartei-me! É que a onda profunda, ainda vá lá. Agora, tudo a rimar! Deves-te achar uma metáfora do Camões moderno. Eu sei que era para pormos um pouco de nós nestas linhas, mas tu já paravas!
ZT: Só páro quando não houver mais fundos.
CA: Ok!
ZT: Eu sou o Zé Trotamundos.
CA: Eu sou o Chico Ancorado.