quinta-feira, novembro 25, 2004
Estratégia de viagem
Que faço eu num centro comercial americano do subúrbio de São Paulo, a jantar num restaurante libanês e a aturar uma suíça nascida na Guatemala, crescida no Paraguai e que está de olho num irlandês apaixonado por cerveja japonesa? Tenho de revêr a minha estratégia de viagem...
quarta-feira, novembro 24, 2004
Todas iguais
Foi desta. Foi desta que me mandaram para outro lugar que não esse fim de mundo ou
esse paraíso que é Portugal. Tudo em classe de negociante, que o destino fica do outro lado do Atlântico. Uma guloseima com que nos fazem esquecer as mais de dezasseis horas totais da viagem. Ou para isso, ou para nos crermos importantes, mesmo que não passemos de soldados rasos entrincheirados. Um cálice antes do fuzilamento.
Para fuzilamentos, sejam eles em que classe for, toda a pressa é muita. Qual bom português, deixei escorrer os minutos à volta dum cafezito a meio da tarde, e lá tive de fazer a minha corrida vespertina para apanhar o comboio. A primeira classe pode ter um serviço mais requintado, mas a história só dá honras de revolucionária à classe mais baixa. Não é por isso de esperar no futuro próximo essa que seria a verdadeira revolução na filosofia ferroviária, isto é, a inversão do conceito de "apanhanço" do comboio: este é que passaria a apanhar-nos. Seria o fim de tão desagradáveis correrias. Mas sendo nós nessa corrente filosófica apanhados, será de prever a saída à rua de jacobinos de todas as nações marchando pela defesa da liberdade individual que o perseguidor, e por isso tirano, comboio ameaçaria. Seriam organizados constantes cortes de linha, os comboios nunca consegueriam apanhar ninguém, e acabariamos por ter de correr à mesma, desta feita todo o caminho até ao nosso destino final, o que seria muito pior. Depois deste pensamento profundo, e só depois dele, fiz-me então à corrida para o comboio, que não apanhei, visto está! Nem mesmo tendo um bilhete de primeira classe.
Entrei na carruagem, encostei a mala enorme que carregava mais coisas dos outros que minhas (isto de ser simpático e levar coisas para a filha do chefe que está do outro lado do Atlântico tem os seus custos) e olhei a sala em busca dum lugar no meio da multidão que enchia aquela primeira classe. Primeira classe num país como a Suíça torna-se inútil não só por estar quase tão apinhada como a segunda, mas principalmente pelo facto da maioria da população a ela ter acesso, tornando-a banal. Duas vantagens fora do baralho, fui em busca do que pudesse justificar a quase duplicação do preço. Quando estava quase a perder a esperança da descobrir, vi um carrinho de bebidas a vir na minha direcção: aí estava por fim. E em troca da espera, abuso no consumo: café, digestivo, amendoim e chocolate. Inocência a minha, era tudo bebível contra-pagamento e lá tive de esvaziar a carteira. Vim eu a descobrir uns minutos mais tarde que muito pior que isso era o facto de afinal o carrinho também percorrer as demais classes.
Embora não tivesse apanhado o primeiro comboio, a corrida não foi de todo inútil. Gerou uma outra corrida, desta vez atrás do avião, corrida muito mais dificil como qualquer um poderá compreender: o avião anda mais depressa. Se dificuldade motiva, mais motiva a necessidade. Tanto assim foi que, despachadas as malas, o teimoso relógio ainda nos dava meia-hora disponível antes do embarque. Esperar sim, mas não no meio dessa ralé que enche os aeroportos. De elevador panorâmico, subimos directamente até à sala onde só entram manadas com o carimbo "business". Entrei e procurei coisa que justificasse o preço deste novo bilhete de categoria. Procurei à direita, investiguei à esquerda, fui ao fundo da sala e até vasculhei na casa-de-banho. Vantagem só a encontrei mesmo no frigorífico, mas a cerveja era de segunda numa classe que se queria de primeira! Ainda assim, foi com ela que amacei o corpo antes de entrar no avião, para garantir melhor sono durante a dezena de horas de viagem. Só mesmo para isso, nunca por ser cerveja ou pelo facto de ser à borla!
Avião adentro, concederam-me um lugar mais espaçoso que o dos comuns mortais lá para trás arrumados. Já mais satisfeito por começar a compreender a vantagem da tarifa mais dispendiosa, experimentei escolher um filme dos propostos no pequeno ecrã individual que habitava do braço do meu assento. Folhei a programação, li as descrições de cada filme, voltei a ler, fiquei indeciso, voltei a ler, voltei a ficar indeciso, esqueci-me do que estava escrito sobre alguns dos filmes, voltei a ler, e supreendentemente ao fim duma boa meia-hora consegui determinar o filme a ver. Radiante pelo meu feito, tentei ligar o ecrã. Experimentei todos os botões e até combinações deles, mas o dito negava-se sempre. Três pancadinhas estratégicas, e a coisa lá entendeu trabalhar, mas quedou-se muda e o filme já tinha começado há muito, inviabilizando toda a utilizade do serviço.
Hora do repasto e até o estômago esperava ser agora o tratamento de rei, mas de nouvelle cuisine só o aspecto: o sabor continuava horrível tal qual o de classe mais em conta. Diferença só mesmo na quantidade: nesta classe há que aturar mais daquilo!
Tirando a espaço para duas pernas e a cerveja de segunda, as classes são como as mulheres: todas iguais, só que algumas ficam mais caras!
quinta-feira, novembro 18, 2004
Imenso Portugal
"Alista-te e viaja; conhece novos mundos", diziam eles! Afinal guardam-me durante meses numa vila minúscula que se agarra aflita às encostas com medo de cair ao lago. E quando finalmente me dão um bilhete de avião, é para esse paraíso para mim de todo desconhecido e ao qual chamam Portugal! Postas as coisas numa tal banalidade, esforcei-me por criar uma situação invulgar: não avisar ninguém e aparecer de surpresa quer na capital, quer na terriola que tenho por natal.
Foi só registar-me num hotel fino da Avenida da Liberdade, e dei uma nova hipótese ao meu velho telemóvel português: concedi-lhe a tarefa de me pôr em contacto com potenciais amigos que se surpreenderiam por ver-me. Sem nunca revelar o meu paradeiro, lá fui entremeando nas conversas perguntas estratégicas para saber da localização de cada um dos elementos da minha lista telefónica. Casamentos, pais, festas, filhos, passeios ou sobrinhos, tudo parecia razão para ninguém pairar por Lisboa.
Estratégia alterada, fiz-me à estrada direito à aldeia. Estacionei o carro por detrás do casebre e bati à porta das traseiras como quem vizinho é. Sem ouvir reacção, voltei a bater. E mais uma vez bati, até que resolvi ir bater a outra porta. A da frente não apresentou resultado diferente, e não sendo o casebre dotado de portas laterais, só me restou voltar ao velho amigo telemóvel para pôr-me em contacto com os potenciais surpreendidos de súbito desaparecidos. Quando eu pensava que tinha já enfrentado todas as razões para não encontrar gente conhecida, eis que mais algumas se juntam à festa: caça, concertos e saraus!
Se à terceira é de vez e se eu era já reincidente, decidi não deixar probabilidade a uma nova decepção. Ala para a tasca do "sô Sesmeiro", que ele está lá sempre de copo pronto na mesa para nos receber. Um copo para receber, uns tantos para entreter, um antes do apito inicial, um a cada falta, outro a cada erro do árbitro, uns tantos para animar a discussão sobre as substituições e mais um pelos minutos de compensação. Bastaram dois jogos completos para matar saudades do maior homem lá da terra. Da terra e de todo este "imenso Portugal", que por Fátima passei na autoestrada e o fado, cantei-o em honra dos copos. Já posso voltar para a Suiça.
"É mais um pró caminho, ó sô Sesmeiro!"
segunda-feira, novembro 01, 2004
Viajar entre mim próprio
A questão foi posta logo no início deste blogue, como um desafio às suas bases quando elas ainda se bamboleiam inseguras. Atingindo-me de rajada, um anónimo projectou "Viajas por entre mundos, mas será que viajas por ti próprio?".
A pergunta tem uma resposta que é fácil, mas de dura constatação. Não viajo por mim próprio: viajo segundo a contabilidade de quem já rico me dá por missão aumentar a sua fortuna. Sou um peão desconhecido num tabuleiro mundial, um soldado raso às ordens dum comandante escondido. Não tenho qualquer controlo nos meus destinos, não viajo segundo a minha vontade. Não viajo por mim próprio: sou levado e vejo apenas aquilo que me é permitido ver.
Decidi entregar o meu itinerário à decisão alheia pela simples razão de que se não o fizesse não teria bilhete de partida. Prostituo a escolha pela hipótese de fuga.
Não sou senhor do meu itinerário, nem sei se gostaria de ser. Tomo a posição passiva, aberto a que me larguem num cenário diferente, porque na verdade é apenas isso que busco: diferença que me possa atraír, mantendo-me alheado da falta de equilibrio pessoal e do desconhecimento do que isso é, do que isso pode ser para mim. Viajar levado é alimento para o vital adormecimento da consiência do meu ser, pitéu com que tento diariamente empanturrar-me, na esperança de que num dia igual aos outros eu seja atingido de chofre por um equilibrio ideal já pronto-a-vestir.
O sonho americano incita-nos a coser a nossa própria felicidade, mas como saber de antemão qual o fato que nos acentará bem? Afinal o que fazemos não é exprimentar vários até encontar um menos mau, em vez de desenharmos nós mesmos o ideal? E aqueles que exprimentamos não são apenas os que a indústria nos coloca à disposição?
Eu vou exprimentando o que a indústria me vai apresentanto. Espero que ao fim de muita experimentação possa ir aprendendo a orientar as tentativas na direcção dum equilibrio sustentável. Livre-me eu próprio de nunca conseguir adquirir esse que é o mais valioso dos saberes!